ENSAIO SOBRE OS ASSOMBROS

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Por: Fábio Almeida Pedroto e Francisco Enaldo

Os Delegados de Polícia se veem diante de uma afiada navalha[1] cujo gume fora forjado por longas décadas e a escolha deve ser cirúrgica: ou garantem direitos fundamentais da pessoa presa que lhe é apresentada ou arremessam as opacas tintas da lei penal de forma implacável e, não raras vezes, espetacular – satisfazendo o apetite dos famintos que pautam irremediável e docilmente as tragédias sociais, vertendo em várias direções o sangue nosso de cada dia[2]. E o que dizer dessa imprensa policialesca que reaviva e reforça os sujeitos perigosos, imergindo a realidade em cúmulos empanados sob o discurso da dita liberdade de expressão e o direito social à (des)informação[3], para tanto anunciando, a todo momento, algo de extraordinário[4], notadamente no campo penal?

Em contraponto, seria permitido aos Delegados de Polícia quebrar a lança[5] e distribuir garantias em parágrafos com palavras estranhas como “legalidade”, “dignidade” e “liberdade”? Em tempos de imposição de dores restaria outra saída senão manterem a engrenagem constantemente lubrificada para delírio da esquerda punitiva[6]? Estariam os Delegados de Polícia verdadeiramente livres para defender direitos em chamas, mesmo sendo reféns dos olhos agudizados e encarceradores do Sistema de Justiça Criminal[7]? Estimulados à tibieza heroica punitivista, muitos tombam no caminho. Alguns poucos delirantes desfraldam a espada jurídica anti-sistêmica e a golpeiam contra os algozes dos habitantes destes verdadeiros campos de concentração urbanos de nosso país[8].

Eis que devem romper ritos decenários, expondo as injustiças que estão sob as cores de uma pretensa legalidade formal, trazendo à tona corajosas decisões: como primeiros garantidores da legalidade e da justiça seria decente nublar os olhos para todo processo de moagem do flagelo pelo sistema punitivo? É possível estar em paz após assumir uma autoria por omissão na hemorrágica produção de incisões nos sobranceiros espaços de atuação do Estado Penal? A legítima autoridade policial tem o papel de assegurar a completa e irrestrita observância daquilo que está escrito há mais de trinta anos nas páginas constitucionais, tendo a dignidade do ser humano como fundamento da República e vetor de qualquer decisão estatal. Importa recordar que os iluministas já decantaram esses preceitos basilares há um par de séculos, bastando apenas encarar a elite jurídica tecnicista e desbriosa aplicando o que é (ou deveria ser) o óbvio. Mais se teme entintar uma garantia constitucional no papel, relaxando uma prisão em sede policial, do que encarcerar um indivíduo por bagatela, evitando-se, desta forma, a fricção com as instâncias de validação que pouco ou nada se importam (a depender da categoria do punido). Muitas prisões no Brasil poderiam ser consideradas ilegais, seja por irregularidades formais e materiais nos atos pré-processuais de apuração, seja durante o processo criminal ou execução da pena. O que temos são vários retalhos com a afiada navalha em partes distintas deste corpo perplexo que é o quinto artigo da Constituição Brasileira.

Neste quesito, cabe pensar em um verdadeiro cativeiro jurídico no qual estão alocados os Delegados de Polícia, tendo, como exemplo, a dificuldade de valoração fática do que lhe é apresentado como verdade insofismável (denominado de “fé pública”). Pari passu, deparam-se com produções carregadas de preconceitos regressos à feitura legal e esta, por sua vez, nasce hegemonicamente branca, burguesa, masculina e heterossexual. Trata de um processo de criminalização arrimado em seleção de interesses dos quais a população paradoxalmente dela não participa.

A isso se aglutina a persistente presença de herança do estudo desfocado de matriz etiológica que regurgita nas vozes de agentes pronunciantes do vocábulo “lombrosiano” para indigitar alguém como essencialmente criminoso (rectius: sujeito criminalizado) . Deveras, suportada pela desprotegida patuleia.

Não se descura, conquanto as tentativas deliberadas, a existência de portadores de estigmas negativos, como os negros ocupantes prioritários das vagas prisionais.

Este problema exige aquilatar sob uma perspectiva sistêmico-histórica, desnudando a relação entre o racismo das instituições e o nosso “criterioso” sistema penal.

Um outro fantasma da atividade policial emana das incontáveis vítimas desprovidas de tratamento condizente com a condição combalida. Hoje, além de uma insuficiência ou abstenção estatal, a exploração e reprodução sensacionalista da mídia tem desenvolvido nesses seres excessivo medo e insegurança psicológica constante de nova investida, se criando a vitimização quaternária, pouco reconhecida.

Desta forma, segue-se o fluxo esperado com “pares de olhos tão profundos”[9] que amargam o conteúdo de interrogatórios e oitivas cinzentos e redigidos à base de décadas mortificadas, onde não importa a pessoa animalizada diante das perguntas, mas sim as providências inquisitórias para a satisfação plena dos cidadãos da cidade sitiada. Dos poucos Delegados que questionam e rompem esse roteiro secular mal formulado, certamente alguns devem responder para si próprios a mesma frase de Rieux diante da pergunta de Tarrou: “quem lhe ensinou tudo isso, doutor? A resposta veio imediatamente – A miséria”[10].

Que tenhamos mais Delegados de Polícia com o espírito de Rieux, intrépidos e imunes ao vírus Prodigium Angoris.[11]

Fábio Almeida Pedroto – Delegado de Polícia Civil do Espírito Santo; Mestre em Segurança Pública

Francisco Enaldo – Delegado de Polícia do Espírito Santo


[1] BATISTA, Nilo. No fio da navalha. Rev. Epos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1 de junho 2011. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2178-700X2011000100002&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 13 dez. 2020.

[2] Referência à canção “O patrão nosso de cada dia”, lançada em 1973 pelo grupo Secos e Molhados em seu álbum inaugural.

[3] MARCONDES FILHO, Ciro. O capital da notícia: (jornalismo como produção social da segunda natureza). Editora Atica, 1986.

[4] PIERRE, Bordieu. Sobre a televisão. 1997.

[5] Referência à canção “Sangue Latino”, lançada em 1973 pelo grupo Secos e Molhados em seu álbum inaugural.

[6] KARAM, Maria Lúcia. A esquerda punitiva. Discursos sediciosos, v. 1, n. 1, p. 79-92, 1996.

[7] DE MORAIS, Pedro Rodolfo Bodê. Empreendedorismo Moral na Magistratura: as representações.

[8] BATISTA, Op. Cit., p. 1.

[9] Trecho da canção “Avohai”, composta em 1978 por Zé Ramalho e lançada em seu álbum de estreia.

[10] CAMUS, Albert. A Peste. 22ª Edição. Rio de Janeiro: Record, 2013.

[11] Expressão cunhada por Nilo Batista no podcast “A pena em tempos de cólera”. Disponível em: https://soundcloud.com/segurancadosdireitos. Acesso em: 13 dez. 20.