NÃO QUERO FLORES. HOJE É MAIS UM DIA DE LUTA.

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Nos últimos anos a palavra “feminismo” tornou-se ainda mais conhecida como nunca havia sido antes. Para além dos muros acadêmicos e das lutas sociais organizadas nas ruas, as discussões acerca dos direitos das mulheres chegaram ao cotidiano dos cidadãos. Seja nas mesas de bares, nos almoços em família ou nos ambientes de trabalho, raro é encontrar pessoa, homem ou mulher, que não tenha ouvido falar sequer uma vez no assunto. Entretanto, somente o fato de o tópico estar em alta, não significa, necessariamente, que seja entendido como uma questão séria, nem que seus debates se encaminhem para consequências práticas e efetivas no dia a dia das mulheres.

O que acontece muitas vezes é uma má interpretação e, até mesmo, uma distorção do termo feminismo, que comumente é usado de forma pejorativa, objetivando deslegitimar ou diminuir os enfretamentos que incita. Apesar de todos se sentirem no direito de fazer apontamentos sobre a luta feminista e os meios pelos quais ela se desenvolve na maioria esmagadora das vezes, aqueles que opinam sequer conhecem as origens dos movimentos e os enfretamentos que superaram para ser hoje um tema em pauta.

Olhando para a linha do tempo, torna-se inegável perceber como houve avanços nos direitos das mulheres. Se antes as sufragistas se reuniam em porões escuros para discutir clandestinamente a urgência do voto feminino, hoje me é possível escrever enquanto mulher este texto que busca refletir criticamente o papel do feminismo na nossa sociedade e o porquê de suas discussões, embora acaloradas e frequentes, não serem capazes de dizimar o machismo e a desigualdade de gênero do nosso cotidiano.

Embora seja extremamente incomum encontrar nas novas gerações de meninas alguma que não esteja familiarizada com os questionamentos levantados pelo feminismo, mais difícil ainda é se deparar com uma que não tenha experenciado de uma forma ou de outra o machismo nas suas curtas vivências. Mesmo tendo acesso a informações valiosas e estando inseridas em um contexto de coexistência com grandes pensadoras e pensadores sobre à temática, mulheres de todas as idades continuam a conviver com o machismo de perto.

A grande maioria das pessoas tem atualmente noção do que é o machismo e de como combatê-lo. Entretanto, sua raiz é tão profunda e estruturada em nossa sociedade que são imensas as vezes em que o mesmo passa desapercebido, por não apresentar a roupagem da tradicional violência física e/ou sexual. Para muito além da agressão de seus corpos, as mulheres são constantemente hostilizadas, em aspectos que vão desde a ordem psíquica à social.

Desde crianças, as mulheres tem suas individualidades reprimidas quando forçadas a se vestir e se portar de determinada forma. Me recordo bem da minha própria infância quando me orientavam ao mesmo tempo a usar vestidos e a sentar de pernas fechadas. Também não podia mais brincar de certas atividades porque já era “mocinha”, enquanto via os meninos da mesma faixa etária brincarem de tudo que lhes viessem à mente e sentarem da forma que preferissem. Para os homens, aliás, sempre houve a desculpa de serem apenas “meninos”, enquanto a fala direcionada para as mulheres era a de que elas “já sabiam o que estavam fazendo, não eram mais crianças”.

A adultização compulsória permanece por toda a vida das mulheres. Quando adolescentes, são levadas a aderir padrões de beleza incompatíveis com a realidade, em uma busca incessante para se apresentarem enquanto bem cuidadas e preocupadas com a aparência. É notório que no imaginário social cabe à mulher se preocupar com o subjetivo, seja ele da ordem do cuidado com o corpo ou com as preocupações sentimentais.

Não é surpresa, embora trabalhoso perceber, que quando as mulheres se relacionam com os homens, cabem as primeiras o posto de cuidadoras emocionais e detentoras de toda a sensibilidade do relacionamento. Falar e expressar sentimentos, bem como pensar o emocional das pessoas envolvidas na relação, representam tarefas quase que exclusivamente feminina. Dessa forma, mesmo que de modo inconsciente, a mulher passa a se ocupar não somente de seu sentimentalismo individual, mas também a ser cobrada pelo de seu parceiro. Cabe à mulher perceber quando seu marido está mal ou passando por dificuldades, assim como é seu dever compreender que os homens “são diferentes” e, por isso, ignorar a falta de diálogo e a abertura sentimental destes. As mulheres passam a protagonizar, além de seus papéis de namoradas e esposas, atitudes maternas para com seus parceiros, tomando pra si a reponsabilidade de cuidadoras e aconselhadoras.

Voltando nossa atenção brevemente para o âmbito social é possível perceber, por meio das discussões acerca da igualdade salarial, o quão distante estamos de atingir a equidade entre os gêneros. No Brasil e na maioria esmagadora dos países ao redor do globo, mulheres seguem ganhando menos dinheiro para desenvolver as mesmas funções desempenhadas por um homem. O questionamento do nosso intelecto e da nossa capacidade é uma violência sutil, frequente e altamente danificante. Somos levadas a crescer questionando nosso potencial feminino frente ao masculino, e a acreditar, mesmo que involuntariamente, que somos de alguns modos inferiores ou menos capazes. A proeminência dos homens nos espaços de poder e tomada de decisões é esmagadora e reflete sobre as mulheres seu papel de passividade e impotência. Como podemos dizer que o machismo está desaparecendo quando na prática ainda temos tão poucas mulheres em condições reais igualitárias a dos homens?

O machismo vive entre nós e continuará a existir enquanto não for percebido e exaustivamente combatido em todas suas facetas. Enquanto os homens se indignarem com a mulher espancada que veem nos noticiários, mas continuarem a consumir e compartilhar os vídeos que circulam nos seus grupos privados em redes sociais que tratam a mulher como objeto, o machismo continuará. Enquanto os homens se horrorizarem com o caso de estupro que aconteceu do outro lado do mundo, mas continuarem a rir das piadas machistas dos seus colegas, o machismo continuará. Todas as vezes em que alguém se disser feminista ou defensor dos direitos das mulheres, mas tapar seus olhos para as violências cotidianas e tênues que as mulheres ao seu redor sofrem, o machismo prevalecerá.

Precisamos urgentemente começar a constranger quem perpetua atos machistas e violentos. Precisamos que um homem reprima abertamente seu próprio colega por tratar mal sua namorada na frente dos amigos. Precisamos que os filhos cobrem de seus pais o mesmo cuidado e atenção que cobram de suas mães. Precisamos que os homens assumam seu papel nos afazeres diários da casa e no planejamento familiar. Precisamos cobrar ao governo uma educação libertadora e de qualidade para homens e para mulheres e da mesma forma exigir salários e condições igualitárias. Precisamos que sejam punidos corretamente aqueles que violam ou desrespeitam mulheres, com leis que efetivamente funcionem na prática. Precisamos urgentemente que as pessoas se indignem com o machismo e com a violência que acontece na frente dos seus narizes, ao invés de se revoltar somente com a que observam de longe. Precisamos de homens que se responsabilizem por seus sentimentos e ações, e não mais esperem que as mulheres de sua vida sejam resolutoras de seus traumas e dificuldades emocionais. Precisamos de pessoas que não se silenciem diante de situações de opressão, que não recorram aos “textões” nas redes sociais sem tomar atitudes práticas. Não precisamos de flores no dia das mulheres, precisamos de mudanças de comportamentos todos os dias.

Silvana Fiorillo Rocha de Resende – Diretora Social

Associação dos Delegados de Polícia de Minas Gerais