Não cabe ao juiz “legislar” e comparar a injúria racial ao racismo

0
3931

Por Jefferson de Carvalho Gomes e Alberto Sampaio Júnior

Recentemente, a revista eletrônica Consultor Jurídico protagonizou um belo debate acerca dos contornos dogmáticos e semânticos dos crimes de injúria racial e os resultantes de racismo. O debate teve como ponto de partida uma notícia[1] veiculada na própria ConJur, na qual foi divulgado que a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça havia restabelecido a condenação do jornalista Paulo Henrique Amorim a um ano e oito meses de reclusão, por ofensas, de cunho racial, praticadas contra o também jornalista Heraldo Pereira. A referida corte entendeu pela aplicação da regra de imprescritibilidade (artigo 5°, XLII, CRFB/88) ao crime de injúria racial (Artigo 140, §3º, do CP), sendo este o fundamento para a manutenção da condenação do referido jornalista.

Com propriedade, o professor doutor Lenio Luiz Streck criticou[2] o entendimento do STJ, aduzindo que o tribunal fez uso de interpretação extensiva e analogia in malam partem. Cremos, aliás, que este argumento motivou a manifestação do também professor doutor Guilherme de Souza Nucci[3], que, por sua vez, defende a posição adotada pelo STJ, exclamando: “Somente quem nunca sofreu racismo, acha isso injúria racial”.

Sendo assim, instigados pelo debate e tocados com as recentes injúrias raciais sofridas pela atriz Taís Araújo[4] e também por um dos jogadores do São Paulo Futebol Clube, Michel Bastos[5], resolvemos expor nossa respeitosa colaboração, na tentativa de um melhor entendimento acerca da matéria.

Delimitando a questão: injúria racial e racismo
Superada a breve exposição da divergência, entramos no ponto central da presente reflexão: Pode a injúria racial ser comparada à prática de racismo? A fim de elucidar a questão, faz-se necessário pontuarmos algumas peculiaridades a respeito dos delitos em tela.

Pois bem.

Tipificada no artigo 140, §3°[6], a injúria racial[7] (preconceituosa / qualificada) prevê pena de reclusão de um a três anos e multa. No que concerne ao preceito secundário, Bitencourt entende que a pena em abstrato do crime de injúria preconceituosa é desproporcional, eis que a injúria racial, possui o mesmo quantum condenatório que o homicídio culposo, que também prevê pena de detenção de um a três anos. Percebe-se que violações à honra receberam maior reprovabilidade do que violações à vida. Aliás, o ilustre doutrinador entende que “a própria proteção jurídica é preconceituosa”.[8] Ante sua posição topográfica no Código Penal, o bem juridicamente protegido é a honra (subjetiva), sendo que a utilização de elementos de etnia, raça, cor, religião, origem, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência são determinantes à sua configuração.

Ainda sob o respaldo das lições de Bitencourt: “De acordo com a intenção da lei nova, chamar alguém de ‘negro’, ‘preto’, ‘pretão’, ‘turco’, ‘africano’, ‘judeu’, ‘baiano’, ‘japa’ etc., desde que com vontade de ofender-lhes a honra subjetiva relacionada a cor, religião, raça ou etnia, sujeita o autor a pena mínima de um ano de reclusão (…)”.9 A propósito, é preciso destacar que o legislador, inicialmente, deu-lhe o tratamento de ação penal privada. Sendo assim, uma vez se tratando de violação à honra subjetiva, a opção legislativa pela ação penal privada se revelou a mais acertada.

Contudo, após a edição da lei 12.033/09, a ação penal passou a ser pública e condicionada à representação. Acreditamos que a opção legislativa pela nova espécie de ação penal tenha levado em consideração a pena em abstrato, pois, conforme acima apontamos, é mais severa que as penas previstas para as hipóteses de homicídio culposo, o que seria incompatível com ações penais de natureza privada. No entanto, a publicidade da ação penal nos crimes que violam a honra também se mostra incongruente à sua própria natureza (subjetiva), pois não há como se aferir, objetivamente, a violação experimentada pelo ofendido.

Delimitado pela Lei 7.716/89, a prática de racismo ainda é objeto de muitos equívocos conceituais. Conforme leciona Andreucci, racismo, preconceito racial e discriminação racial, apesar de intimamente ligados, não são sinônimos. Racismo, segundo o autor, é próprio da história humana, podendo ser classificado como um fenômeno cultural.[10] Em termos mais precisos, o racismo é fonte de segregação e hostilidade à determinada categoria de pessoas, fomentando desigualdade e intolerância. Em comum, os crimes previstos na lei de preconceito de raça ou de cor possuem os verbos impedir, negar, obstar, recusar, o que demonstra a preocupação legislativa em fomentar igualdade de tratamento e oportunidade entre os inúmeros grupos que formam o corpo social. Entre os tipos penais previstos na Lei 7.716/89, merece destaque o disposto no artigo 20, que dispõe acerca da prática, indução e incitação ao preconceito ou discriminação, prevendo pena de um a três anos de reclusão e multa. Diferente da injúria racial, que possui como objetos de proteção a honra, os crimes de preconceito e de cor possuem a finalidade específica de segregar indivíduos ao acesso a um determinado direito garantido pela Constituição, conforme cada caso. Para além de violações à honra, o ofendido, pela simples leitura dos referidos verbos (impedir, negar, obstar etc.), tem sua condição de igualdade maculada, entre outros.

Por que discordamos do posicionamento de Nucci?
Conforme exposto em sua coluna, Nucci entende que a injúria racial é racismo, rechaçando posicionamentos pretensamente superficiais:

“Segundo me parece, pelos comentários publicados, a maioria nem leu o que eu escrevi na nota ao artigo 140 §3º, do Código Penal. E muito menos leu o que escrevi e como defini o racismo nos meus comentários à Lei 7.716/89 no meu livro Leis Penais e Processuais Comentadas. Tem-se tornado habitual, infelizmente no Brasil, a crítica por “ouvi dizer”.”

Em que pese o brilhantismo acadêmico do ilustre professor, ousamos discordar de sua primeira conclusão (injúria racial é uma forma de racismo). Aliás, a fim de corroborar com o nosso entendimento e evitarmos a crítica do “ouvi dizer”, por ora, utilizaremos as lições do próprio professor Nucci.

Apesar de haverem similitudes semânticas entre o artigo 140, §3°, do Código Penal e o artigo 20 da Lei 7.716/89, os objetos são totalmente diferentes, conforme expõe Nucci, em sua crítica à imprescritibilidade imposta aos delitos praticados sob a égide da Lei 7.716/89. Afirma o aludido autor[11:] “Muito embora estejamos defendendo a gravidade do delito de racismo e sua devida punição, da forma mais ampla possível, não podemos concordar com preceito retro mencionado. Por que ser imprescritível?” Nucci diz que a imprescritibilidade, in casu, é “pura demagogia”. Ora, se o próprio professor aponta uma crítica à imprescritibilidade dos crimes de racismo, por que não aplicar tal regra ao crime de injúria racial? Na mesma obra, Nucci, quanto ao racismo, expõe[12]: “Parece-nos possível, igualmente, considerar racismo a busca da exclusão de outros grupos sociais homogêneos, exteriormente identificados por qualquer razão”. Sendo assim, quando Nucci traz a lume o significante “outros”, deixa, implicitamente, entendido que os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor possuem caráter coletivo, e não individual. Portanto, ao conceituar racismo em uma ótica plural, surge o primeiro obstáculo ao igualá-lo à injúria racial, que possui caráter meramente individual — ou poderíamos falar de uma honra subjetiva coletiva?

Ainda em sua prestigiada obra, Nucci tece alguns comentários a respeito do artigo 20 da Lei 7.716/89, mais especificamente quando trata do confronto com o artigo 140 §3º do CP, afirmando que a construção do tipo penal não “respeitou o princípio da taxatividade”, uma vez que é “preciso considerar que o artigo 20 da Lei 7.716/89 diz respeito a ofensa de um grupo e não somente um indivíduo, enquanto o artigo 140 §3º do Código Penal, ao contrário refere-se a uma pessoa”. E continua[13]: “Se o agente pretender ofender um indivíduo, valendo-se de caracteres raciais, aplica-se o art. 140 §3º do Código Penal”. Percebe-se que o próprio Nucci se contrapõe ao entendimento exarado pelo STJ no julgamento do caso Paulo Henrique Amorim e Haroldo Costa. Paradoxalmente, as precisas lições de Nucci corroboram o nosso entendimento, mais especificamente ao delimitar o alcance do crime de injúria racial, que somente pode ser praticado — repita-se — contra um indivíduo. Aqui, torna-se nítida a devida distinção entre ambas condutas criminosas, mesmo havendo similitude entre os elementos de motivação (racismo) e de adequação típica (injúria racial).

O ativismo judicial nosso de cada dia
Há décadas Streck denuncia que a carência de uma sofisticada teoria da decisão em terrae brasilis é fator de insegurança jurídica. Não à toa demonstrou desconforto ao se deparar com a expressão “tenho para mim”, utilizada no corpo de uma decisão judicial. Ora, realismo jurídico? Afinal, qual é o “lugar” da lei? Positivismo, aliás, tornou-se termo pejorativo — quanta bobagem! Aliás, é preciso entender que positivismo jurídico não se resume ao modelo medievo, ou seja, não possui apenas uma faceta.

Não podemos permitir que o direito seja aplicado de acordo com a “benevolência” de cada magistrado. Sim, qualquer tipo de ato de intolerância preconceituosa é repugnante. Contudo, principalmente quando estamos frente ao Direito Penal, as regras do jogo, previamente concebidas, não podem sofrer com qualquer tipo de encorajamento moral ou, se assim preferirem, gambiarras epistemológicas.

Não obstante, o anseio popular por justiça a qualquer custo também impõe um alto custo ao Estado Democrático de Direito, a exemplo da postura adotada por alguns juízes, que, ludibriados pela pretensa e falaciosa ideia de estarem a serviço da segurança pública, “legislam” suas próprias leis. No dizer de Bobbio: “A subordinação dos juízes à lei tende a garantir um valor muito importante: a segurança do direito, de modo que o cidadão saiba com certeza se o próprio comportamento é ou não conforme à lei”.[14] Nesse sentido, Ronald Dworkin, em seu livro Uma Questão de Princípio, mostra bem como se deve separar a questão jurídica da política. O brilhante jusfilósofo deixa bem claro que o papel de criar as leis incumbe aos políticos que são eleitos pelo voto popular, enquanto aos juízes cabe o papel de julgar as questões que por ventura possam surgir da lei. Dworkin[15] conclui: “Os juízes não são eleitos nem reeleitos, e isso é sensato porque as decisões que tomam ao aplicar a legislação tal como se encontra devem ser imunes ao controle popular. Mas decorre daí que não devem tomar decisões independentes no que diz respeito a modificar ou expandir o repertório legal, pois essas decisões somente devem ser tomadas sob o controle popular”. Ou seja, Dworkin delimita bem o tema e deixa claro que vivemos em uma democracia, e não em uma juristocracia.

À justiça, cabe prestar respostas constitucionalmente adequadas. É preciso responsabilidade política nas decisões. Ao julgador não cabe análises morais, uma vez que os anseios morais antecedem e norteiam a edição da lei. Também não estamos, aqui, defendendo a retrógrada figura do juiz-boca-da-lei. Não, não é isso. O cardápio foi previamente confeccionado, basta que o garçom nos sirva, assim também é a função do juiz. É bem verdade, aliás, que algumas teorias e muitas reformas legislativas buscaram delimitar a atuação dos juízes. Contudo, sentimos que vivemos uma espécie de esquizofrenia paradigmática, cujo o novo continua a ser pensado como o velho, a exemplo da interpretação dada ao artigo 212 do Código Processo Penal.

Atos de discriminação, por si só, são repugnantes, a exemplo do caso Paulo Henrique Amorim e Haroldo Costa. Contudo, a regra do jogo é clara ao estabelecer que a ação penal em crimes daquela natureza é pública condicionada à representação, com prazo decadencial de seis meses. Sendo assim, estender a regra de imprescritibilidade à injúria qualificada se aproxima a um pretenso ato de bondade — aliás, o que/quem nos protegerá da bondade dos bons? Aplaudir tamanho ato de benevolência jurisdicional, para além de violação ao devido processo legal, é uma afronta ao Estado Democrático de Direito.

O tema é delicado. Não podemos nos levar pelas paixões. Presenciar rotineiros atos de discriminação é algo desmotivador. Porém, ainda mais desmotivador é presenciar a cotidiana subversão de direitos e garantias fundamentais. E como todo o respeito a quem divirja de nós, a Constituição, suas garantias e o Estado Democrático de Direito têm de estar acima de qualquer paixão ou ativismo.


6 Art. 140. Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:

Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.

(…)

§ 3º – Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:

Pena – reclusão de um a três anos e multa.

7 A injúria racial foi instituída em nosso ordenamento penal por meio da Lei 9.459/97.

8 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, 2 : parte especial : dos crimes contra a pessoa. 9.ª edição. São Paulo : Saraiva, 2009. p. 334.

9 Op. Cit. 335.

10 ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Legislação Penal Especial. 6.ª edição. São Paulo : Saraiva, 2009. p. 72.

11 NUCCI, Guilherme de Souza; In: Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, Volume 1, 6ª Edição, P. 188; Ed: RT, 2012.

12 NUCCI, Guilherme de Souza; Op. Cit.; P. 195.

13 NUCCI, Guilherme de Souza; Op.Cit.; P. 217.

14 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico – lições de filosofia de direito. São Paulo : Ícone, 2006. p. 40.

15 DWORKIN, Ronald; In: Uma Questão de Princípio; Ed. Martins Fontes; 2ª Ed.; 2005. P. 17.