Ciclo completo militar: uma excrescência no estado democrático de direito

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Tramita na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda à Constituição n.º 430/09, e seus apensos, cujo teor aborda profundas mudanças nos órgãos responsáveis pela segurança pública no país. A PEC 430/09 cuida da instituição de uma nova organização policial estadual, cria e disciplina novas carreiras e a estrutura básica da nova polícia. Permite que as guardas municipais realizem policiamento ostensivo, através de convênio com a polícia estadual. Institui o Conselho Nacional de Segurança Pública e o Funda Nacional, Estadual e Municipal de Segurança. Extingue os Corpos de Bombeiros Militares e a Polícia MIlitar. Menciona requisitos para a escolha do Delegado Geral da Nova Polícia. Concede autonomia técnico-funcional à perícia. Cria fundos nacional, estadual e municipal de segurança pública,dentre outras inovações.Estão apensadas à PEC 430/09 outras PECs, como a 432/09, 321/13, 423/14, 431/14 e 127/15.Todas as PECs encontram-se na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Durante a tramitação, Deputados Federais ligados à Polícia Militar apresentaram e aprovaram requerimento para um Ciclo de Palestras em vários Estados com o título: “POR UMA NOVA ARQUITETURA INSTITUCIONAL DA SEGURANÇA PÚBLICA: PELA ADOÇÃO NO BRASIL DO CICLO COMPLETO DE POLÍCIA”.

Na realidade, o objetivo dessas palestras não é discutir sobre a criação de uma NOVA POLÍCIA com a adoção do CICLO COMPLETO, mas sim aprovar emenda à constituição permitindo que a POLÍCIA MILITAR tenha a atribuição das atividades de polícia preventiva (policiamento ostensivo e manutenção da ordem púbica) e polícia repressiva (lavratura de auto de prisão em flagrante, investigação, confecção de termo circunstanciado e de inquérito policial), ou seja, a POLÍCIA MILITAR vai realizar toda a atividade persecutória pré-processual.

Dessa forma, por exemplo, quando a POLÍCIA MILITAR se deparar com uma situação flagrancial, envolvendo violência doméstica, além dos atos de investigação concernentes à polícia judiciária (perícia criminal, exame de corpo de delito, apreensão de objetos, condução de testemunhas etc), todos os envolvidos (autor, vítima, testemunhas, policiais militares etc) serão encaminhados ao batalhão da polícia militar para ser lavrado o auto de prisão em flagrante, devendo a corporação policial militar adotar outras medidas como solicitação de medidas protetivas, acompanhamento da vítima em sua residência para retirar seus bens pessoais etc.

Todos os procedimentos investigatórios envolvendo menores também serão realizados pela POLÍCIA MILITAR em suas estruturas físicas, como Auto de Apreensão de Adolescente por Prática de Ato Infracional (AAAPAI), Boletim de Ocorrência Circunstanciado (BOC), dentre outros.

Por fim, outro exemplo, dentre muitos outros, é o prosseguimento das investigações do chamado AUTO DE RESISTÊNCIA (homicídio proveniente de Intervenção Policial), com a consequente lavratura de auto de prisão em flagrante no batalhão de policia militar e todos os atos investigatórios realizados pelos próprios policiais militares (oitiva de testemunhas, requisição de perícias, exame residuográfico – pólvora nas mãos – interrogatório do investigado vivo etc).

Com sua estrutura disciplinar super rígida, a anômala existência de várias patentes, ideologia bélica e de confronto, com inúmeros casos de desrespeito aos direitos fundamentais e afastamento do modelo de polícia cidadã, cuja resolução de conflitos entre as pessoas seria o objetivo principal, a doutrina militar não é compatível com o sistema de investigação criminal e de persecução penal no atual regime democrático.

Os argumentos de que as polícias civis e militares, de forma isolada, seriam mais eficientes e eficazes com a adoção do ciclo completo revelam-se absolutamente inconsistentes. Primeiramente, ambas as polícias mal conseguem executar as suas atribuições constitucionais de forma adequada. Foram relegadas nos últimos anos, pós constituição de 1988, aos patinhos feios de todos os órgãos responsáveis pela persecução criminal. A Defensoria Pública, o Ministério Pública e o Poder Judiciário foram dotados de autonomia administrativa e financeira. As polícias civis e militares dependem do humor do Chefe do Executivo, cuja interferência política nas polícias é vergonhosa e às vezes ilegal, inclusive com manipulação de investigações. As Polícias Civis não possuem, até hoje, uma lei orgânica.

Relevante também entender que a execução do ciclo completo pela PM apenas transferiria a atividade de investigação, lavratura de auto de prisão em flagrante e termos circunstanciados a policiais militares, demandando milhares deles para tanto, os quais seriam deslocados da sua atividade de policiamento ostensivo para a atividade investigatória. Seria cobrir um buraco, abrindo outro buraco. A atividade de investigação é bastante complexa, exigindo qualificação específica. A lavratura de auto de prisão em flagrante e termos circunstanciados exige conhecimento jurídico profundo, sob pena de sérias violações aos direitos e garantias fundamentais do cidadão. Lavrar um auto de prisão em flagrante não é só preencher um pedaço de papel como muitos acreditam e querem. Demanda processo complexo que remete a várias ciências e conhecimentos, além de exigir cautela na sua lavratura. A celeridade da lavratura deve ser observada, mas nunca deve sobrepor-se aos bens jurídicos envolvidos nesse procedimento, como a vida, a liberdade, a integridade física e mental etc das pessoas envolvidas. A lavratura do auto de prisão em flagrante é similar a uma complexa operação. Um único erro pode acarretar danos seríssimos, irreversíveis. Exemplos não faltam.

Com efeito, algumas pesquisas já comprovaram falhas gravíssimas no sistema 190, seja pela desarrazoada demora no atendimento telefônica ou no envio de viatura e/ou policiais, seja simplesmente pelo não atendimento à ocorrência, fatores que retratam falhas na operacionalização do sistema. Além disso, hoje, no Brasil, mais de 25.000 policiais militares estão lotados em outros órgãos, não exercendo a sua atividade fim como deveriam. Só no RJ temos exatos 2.087 policiais militares (dois batalhões da PM) fora de suas atividades. Muitos oficiais da polícia militar possuem empresas de segurança privada. Suspeita-se, inclusive, que alguns utilizam a estrutura da polícia militar para a execução da atividade empresarial.

Deve-se entender também que no atual sistema organizacional da administração pública todos os órgãos e poderes devem sofrer controle por outros órgãos ou poderes. A adoção do ciclo completo pela PM retiraria o principal controle sobre essa instituição, realizado pela Polícia Civil, ou seja, o controle da legalidade da prisão (tipicidade e estado flagrancial) e da consequente preservação dos direitos fundamentais (por exemplo, a garantia do suspeito não ser obrigado a produzir prova contra si mesmo). Os próprios policiais militares exerceriam esse controle, atividade não recomendada diante da inadequada doutrina militar.

Não podemos olvidar que oficiais da polícia militar possuem a prerrogativa de não perderem o posto e a patente, através de processo administrativo disciplinar, mesmo se praticarem ilícitos penais ou administrativos. Somente por decisão de Tribunal, com trânsito em julgado, podem ser demitidos. Além disso, a comprovada ineficiência da Justiça Militar Estadual, com inúmeros casos no Estado de MG de prescrição da pretensão punitiva, por exemplo, eliminaria quase que totalmente a possibilidade de um oficial da PM ser punido.

Ceder à PM o ciclo completo é entregar a ela própria a fiscalização sobre seus próprios atos. A doutrina militar estigmatizante e seletista, a ineficiência e a sistemática impunidade da justiça militar estadual e a prerrogativa dos oficiais da PM de somente perderem o posto e a patente após sentença com trânsito em julgado, vão transformar a instituição num monstro descontrolado, sem limites e nenhuma fiscalização. Temos centenas, milhares de exemplos, como o homicídio perpetrado por policiais militares, inclusive um Coronel, comandante de batalhão, contra a Juíza Patricia Acioli e o Caso Amarildo da Rocinha. Seria conveniente a própria PM investigar esses crimes?

Nos países chamados “civilizados” a Polícia, em regra, é única e desmilitarizada. As competências de cada polícia são determinadas pelo território ou por especialidades. O único país do mundo que adotou o ciclo completo pelos militares foi Moçambique. Nos Estados Unidos da américa temos a “Law Enforcement” (força policial). Adota-se, em todas as forças, o ciclo completo, NUNCA MILITARIZADAS. Regionalmente existem, em regra, três polícias. Uma estadual, outra municipal e outra em condados (grupo de municípios). As polícias são dividas em divisões, por exemplo, divisão de homicídios, de investigação, de combate às drogas. Existe o policiamento ostensivo, fardado, não militar, e a atividade de investigação, logicamente não fardada. Para um policial ser promovido a investigador deve ter anos de atividade ostensiva. Os Xerifes (Delegados de Polícia) são eleitos. Todos são processados e julgados na justiça comum. Não possuem aposentadorias especiais.

As Organização dos Estados Americanos, através da Comissão Interamericana dos Diretos Humanos, manifestou-se expressamente contrária à realização de investigação de crimes comuns por miitares, praticados por civis, como ocorreu no caso Castillo Petruzzi Vs Perú, Parágrafo 128 da sentença, e Caso Vélez Restrepo y Familiares Vs Colómbia, Parágrafo 240 da sentença.

Na última semana, o Secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, Exmo. Sr. Jose Mariano Beltrame, divulgou que as investigações dos chamados “AUTOS DE RESISTÊNCIA” (homicídios provenientes de intervenção policial) serão realizadas pela Delegacia de Homicídios da Polícia Civil e não mais pelas distritais, dando certamente um salto de qualidade na apurações desses eventos, tendo em vista a profunda especialização daquela unidade policial e reconhecida eficiência. Com o ciclo completo todas as investigações serão transferidas para a Polícia Militar.

A adoção do CICLO COMPLETO PELA POLÍCIA MILITAR jogará o Brasil na contramão da história. Discute-se hoje, na realidade, a desmilitarização da POLÍCIA MILITAR, cuja estrutura e ideologia são incompatíveis com um novo paradigma que a sociedade exige das polícias após a promulgação da constituição de 1988, ou seja, polícias cidadãs que respeitem os direitos fundamentais dos cidadãos.

O Brasil precisa de instituições mais eficientes. A Polícia Militar brasileira está ultrapassada. Não oferece serviços eficazes, eficientes e adequados aos cidadãos. A Polícia Militar deve ser desmilitarizada e a justiça militar extinta. Prerrogativas pessoais de alguns agentes públicos, como oficiais da PM, são incompatíveis com o atual modelo republicano e democrático brasileiro. Precisamos de uma polícia única, civil, comandada por civis.

O que o povo brasileiro deseja é a desmilitarização da polícia militar.

A Federação Nacional dos Delegados de Polícia (FENDEPOL), através de seus representantes, é a favor do CICLO COMPLETO. Entretanto, necessário se faz a criação de uma NOVA POLÍCIA, DE CARÁTER CIVIL, com aparato uniformizado e também estrutura de investigação, com autonomia administrativo-financeira e prerrogativa da inamovibilidade para os seus gestores, sob pena de permitirmos ingerências políticas. Sem esses institutos a NOVA POLÍCIA nascerá natimorta, sem recursos e sem prerrogativas institucionais para o seu pleno desenvolvimento.

O atual modelo adotado no Brasil (Polícia preventiva e ostensiva), ao nosso sentir, é bastante avançado, mas por falta de investimento em recursos humanos e materiais e integração dos dados, além de falta de prerrogativas institucionais mínimas para o desenvolvimento das atribuições constitucionais das polícias, não foi completamente implementado.

O ciclo de seminários está sendo realizado em vários Estados. No próximo dia 16 de outubro o evento será realizado no Estado de Goias. No dia 19 será realizado na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro.

As entidades promotoras e defensoras dos direitos humanos que desejarem participar do ciclo de palestras devem contatar a diretoria da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados e solicitar a sua inscrição para a participação de um representante.

Fonte: Fendepol

http://fendepol.com/noticia/noticia.php?url=ciclo-completo-militar-uma-excresc-ncia-no-estado-democr-tico-de-direito-2015-10-19