ARTIGO: POLÍCIA CIENTÍFICA: AUTONOMIA DA POLÍCIA CIVIL E SUAS CONSEQUÊNCIAS

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*Bruno Taufner Zanotti

O Supremo Tribunal Federal, no dia 08 de junho de 2021, julgou a ADI n° 6621 que trouxe novos contornos para a jurisprudência do Tribunal em temática relativa à polícia científica. No caso, o Tribunal consignou a existência de alteração jurisprudencial no sentido de não mais fixar como de caráter taxativo o rol dos órgãos de segurança pública (art. 144 da Constituição Federal) em razão da criação do Sistema Único de Segurança Pública (Lei nº 13.675/18) que não só ampliou tal rol, como também valorizou a autonomia técnica, científica e funcional dos institutos de perícia. Desse modo, como o rol do art. 144 da Constituição Federal é meramente exemplificativo, o STF consignou que os órgãos de segurança pública são aqueles indicados pelo art. 9º, §2º, do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP):

Art. 9, § 2º, da Lei nº 13.675/18. São integrantes operacionais do SUSP:

I – polícia federal;

II – polícia rodoviária federal;

III – (VETADO);

IV – polícias civis;

V – polícias militares;

VI – corpos de bombeiros militares;

VII – guardas municipais;

VIII – órgãos do sistema penitenciário;

IX – (VETADO);

X – institutos oficiais de criminalística, medicina legal e identificação;

XI – Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp);

XII – secretarias estaduais de segurança pública ou congêneres;

XIII – Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil (Sedec);

XIV – Secretaria Nacional de Política Sobre Drogas (Senad);

XV – agentes de trânsito;

XVI – guarda portuária.

Observe que a regulamentação federal (Lei nº 13.675/18) impõe uma limitação para os Estados, de modo que eles não podem inovar sobre a temática, nem mesmo em sede de emenda à Constituição Estadual, sob pena de inconstitucionalidade. E, nesse ponto, mantém-se a jurisprudência do STF anterior ao julgado no sentido de que os Estados devem respeitar o modelo federal sobre os órgãos que compõem a estrutura da segurança pública.

O julgado ainda reiterou a jurisprudência do Tribunal que confere autonomia às perícias. Nas palavras do Ministro Relator da ADI n° 6621, “tanto podem os Estados optar por garantir a autonomia formal aos institutos de criminalística, quanto podem integrá-los aos demais órgão de segurança pública, sem que isso importe ofensa material à Constituição”. Em outras palavras, nada impede que a polícia científica, órgão responsável pelas perícias, exista e desempenha as suas funções, sem estar, necessariamente, vinculada à polícia civil, porém com consequências específicas a tal desvinculação orgânica e institucional.

Essa autonomia das perícias em relação à Polícia Civil, contudo, traz algumas consequências para os servidores que nelas atuam, de modo que se faz necessário analisar questões relativas ao porte de arma de fogo, aposentadoria especial e poderes de polícia inerentes ao funcionamento da Polícia Civil. Afinal, apesar de as perícias serem órgãos de segurança pública, isso não implica em dizer que eles terão as prerrogativas inerentes à Polícia Civil.

No que diz respeito à aposentadoria especial, aqui vale um paralelo com as guardas municipais. O Supremo Tribunal Federal[1] entendeu que a aposentadoria especial não pode ser estendida aos guardas civis, uma vez que suas atividades precípuas não são inequivocamente perigosas. Pontuou o Tribunal que a proximidade da atividade das guardas municipais com a segurança pública é inegável, porém, a sua atuação é limitada, voltada à proteção do patrimônio municipal.

Em síntese, no caso julgado, conceder o benefício da aposentadoria especial por via judicial não seria prudente, pois abriria margem reivindicatória a diversas outras classes profissionais que, assim como os guardas municipais, lidam com o risco diariamente. É de se ressaltar que cabe ao legislador, e não ao Judiciário, classificar as atividades profissionais como sendo ou não de risco para fins de aposentadoria especial. De igual modo, sob pena de inconstitucionalidade, não pode o legislador criar uma aposentadoria especial para uma classe cuja atividade não seja inequivocamente perigosa.

Via de consequência, a autonomia da polícia científica em relação à Polícia Civil implicaria na perda da aposentadoria policial especial de seus servidores, prevista na Lei Complementar nº 51/85 e ratificada pela Emenda Constitucional nº 103/2019.

Para além da aposentadoria especial, outra questão que merece melhor análise guarda relação com a carteira funcional de policial civil e as prerrogativas inerentes ao porte de tal carteira: poder de polícia (como o livre acesso aos locais fiscalizados pela Polícia Civil) e o porte de arma de fogo.

Os servidores vinculados à Polícia Científica deixam de ter o porte de arma de fogo como algo decorrente da qualidade de até então serem policiais civis. Ainda sobre o tema, vale colocar que as armas de fogo desses servidores deverão, a princípio, ser entregues à Polícia Civil, uma vez que constituem patrimônio desta corporação, cenário equivalente para eventual algema, viatura policial, colete de proteção balística ou qualquer outro item que estejam nas suas respectivas posse, os quais, em tese, devem ser devolvidos.

De igual modo, os servidores vinculados à Polícia Científica deixam de ter poderes de polícia por serem esses inerentes à atribuição de policial civil. De forma mais incisiva, tais servidores deixam de ser policiais civis e passam a ser categorizados como servidores civis em sentido estrito, não mais estando vinculados à Lei nº 3400/81, mas localizados no regime geral dos servidores públicos do Estado do Espírito Santo.

Por fim, o tema do funcionamento da Polícia Civil e do órgão de perícia científica constitui competência legislativa privativa (regra de iniciativa) do Chefe do Poder Executivo – no caso, o Governador do Estado do Espírito Santo –, nos termos do art. 61, §1°, da Constituição Federal, uma vez que as leis estaduais e as Emendas Constitucionais às Constituições Estaduais devem respeitar essa regra de competência.[2]

[1] MI 6515/DF, rel. Min. Roberto Barroso, julgamento em 20.6.2018. (MI-6515)MI 6770/DF, rel. Min. Alexandre de Moraes, red. p/ o ac. Min. Roberto Barroso, julgamento em 20.6.2018. (MI-6770)MI 6773/DF, rel. Min. Alexandre de Moraes, red. p/ o ac. Min. Roberto Barroso, julgamento em 20.6.2018. (MI-6773).

[2] ADI 2616, julgada no dia 19 de novembro de 2014.

*(Bruno Taufner Zanotti: Delegado da Polícia Civil do Estado do Espírito Santo. Diretor do SINDEPES, ADEPOL-ES e ADEPOL do Brasil. Doutor e mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Especialista em Direito Público pela FDV. Professor de Cursos de Pós-Graduação Lato Sensu, além de ministrar aulas em cursos preparatórios para concursos públicos. Autor de obras publicadas pela Editora Juspodivm).