STF não pode retroceder ao discutir ‘maus antecedentes’ no cálculo da pena

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Por Leonardo Isaac Yarochewsky

O Supremo Tribunal Federal, na sessão plenária da última quarta-feira (24/6), concedeu habeas corpus para determinar a realização de novo cálculo da pena de dois pacientes, de modo que não sejam considerados como maus antecedentes procedimentos penais ainda em curso. A decisão acompanhou a tese vencedora de repercussão geral (RE 591.054) firmadaem dezembro do ano passado. Na ocasião, por 6 votos a 4, o plenário fixou que “a existência de inquéritos policiais ou de ações penais sem trânsito em julgado não pode ser considerada como maus antecedentes para fins de dosimetria da pena“.

Contudo, no julgamento da última quarta-feira, alguns ministros fizeram ressalvas em sentido contrário à decisão vencedora anteriormente, mas acabaram votando em respeito à decisão colegiada. Por esta razão a Corte entendeu que a tese, até então vencedora, poderá ser revista.

Como já dissemos em nosso livro (Da Reincidência Criminal)[1], o conceito de antecedente apresenta-se mais abrangente que o de reincidência, já que em relação aos antecedentes são considerados tanto os fatos negativos quanto os positivos da vida do agente. Assim sendo, em razão do princípio da presunção de inocência, consagrado pela Constituição da República (artigo 5, inciso LVII)[2], os “maus” antecedentes só podem ser considerados quando existe uma decisão condenatória transitada em julgado, não podendo, portanto, ser considerados os registros policiais e as ações penais em curso, sem que haja uma decisão definitiva sobre a culpabilidade do agente[3].

Neste sentido é o ensinamento da Antônio Scarance Fernandes para quem “primário é o não reincidente. Ter bons antecedentes significa não ter condenações que, apesar de não gerarem reincidência, revelam propensão ao crime. Não é possível, em face do princípio constitucional da presunção de inocência, admitir como maus antecedentes fatos criminais que ainda não foram julgados ou, pior ainda, fatos em relação aos quais houve arquivamento de inquérito policial ou absolvição”.[4]

A exigência da condenação definitiva, no dizer de Paganella Boschi[5], decorre da garantia da presunção de inocência (artigo 5º, inciso LVII da CR), pois, não fosse assim, se abriria “a possibilidade Kafkiana de apenamento reflexo, com o acusado recebendo em um processo punição determinada pela existência de outro, no qual poderá restar absolvido”.

Admitir a existência de inquéritos policiais ou de ações penais sem trânsito em julgado como “maus antecedentes” para elevar a pena-base ou para qualquer outra espécie de exacerbação da pena constitui uma afronta ao princípio constitucional da presunção de inocência, própria de regimes autoritários e fascistas.

Segundo Lugi Ferrajoli[6], o princípio da presunção de inocência é correlato do princípio da jurisdicionalidade (jurisdição necessária). Para Ferrajoli, “se é atividade necessária para obter a prova de que um sujeito cometeu um crime, desde que tal prova não tenha sido encontrada mediante um juízo regular, nenhum delito pode ser considerado cometido e nenhum sujeito pode ser reputado culpado nem submetido a pena”. Mais adiante o respeitável jurista italiano assevera que o princípio da presunção de inocência é um princípio fundamental de civilidade “fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado”. Na Itália, informa ainda Ferrajoli, com o advento do fascismo, a presunção de inocência entrou em profunda crise. Os freios contra os abusos da prisão preventiva deixaram de existir em nome da “segurança processual” e da “defesa social”, sendo considerada a mesma indispensável sempre que o crime tenha suscitado “clamor público”.

Até o momento, a maioria dos ministros do STF, evocando o princípio constitucional da presunção de inocência, vem negando a possibilidade de se reconhecer como “maus antecedentes” inquéritos ou processos em tramitação.

PENA-BASE – CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS – MAUS ANTECEDENTES – PROCESSOS EM CURSO E PROCESSOS EXTINTOS PELA PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA – CONSIDERAÇÃO – IMPROPRIEDADE. Conflita com o princípio da não-culpabilidade – “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal)- evocar processos em curso e outros extintos pela prescrição da pretensão punitiva a título de circunstâncias judiciais (artigo 59 do Código Penal), exacerbando a pena-base com fundamento na configuração de maus antecedentes. PENA-BASE – MAUS ANTECEDENTES – INEXISTÊNCIA. Constatada a erronia na fixação da pena-base, no que ocorrida a partir de processos extintos pela prescrição da pretensão punitiva, ou ainda em curso, bem como ausentes circunstâncias judiciais contempladas no arcabouço normativo, impõe-se a observância da pena mínima prevista para o tipo. […] (STF – RHC 80071 RS. Relator Min. Marco Aurélio. 2ª T. Publicação: DJ 02-04-2004 PP-00027 EMENT VOL-02146-03 PP-00679.)

HABEAS CORPUS – INJUSTIFICADA EXACERBAÇÃO DA PENA COM BASE NA MERA EXISTÊNCIA DE INQUÉRITOS OU DE PROCESSOS PENAIS AINDA EM CURSO – AUSÊNCIA DE CONDENAÇÃO PENAL IRRECORRÍVEL – PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA NÃO-CULPABILIDADE (CF, ART. 5º, LVII)- PEDIDO DEFERIDO, EM PARTE – O princípio constitucional da não-culpabilidade, inscrito no art. 5º, LVII, da Carta Política não permite que se formule, contra o réu, juízo negativo de maus antecedentes, fundado na mera instauração de inquéritos policiais em andamento, ou na existência de processos penais em curso, ou, até mesmo, na ocorrência de condenações criminais ainda sujeitas a recurso, revelando-se arbitrária a exacerbação da pena, quando apoiada em situações processuais indefinidas, pois somente títulos penais condenatórios, revestidos da autoridade da coisa julgada, podem legitimar tratamento jurídico desfavorável ao sentenciado. Doutrina. Precedentes. (STF – HC 79966 SP. Relator Min. Marco Aurélio. 2ª T. Publicação: DJ 29-08-2003 PP-00034 EMENT VOL-02121-15 PP-03023.)

O ato judicial de fixação da pena não poderá emprestar relevo jurídico-legal a circunstancias que meramente evidenciem haver sido, o réu, submetido a procedimento penal-persecutório, sem que deste haja resultado, com definitivo transito em julgado, qualquer condenação de índole penal. A submissão de uma pessoa a meros inquéritos policiais, ou, ainda, a persecuções criminais de que não haja derivado qualquer titulo penal condenatório, não se reveste de suficiente idoneidade jurídica para justificar ou legitimar a especial exacerbação da pena. Tolerar-se o contrario implicaria admitir grave lesão ao principio constitucional consagrador da presunção de não-culpabilidade dos réus ou dos indiciados (CF, art. 5.º, LVII). É inquestionável que somente a condenação penal transitada em julgado pode justificar a exacerbação da pena, pois, com ela, descaracteriza-se a presunção juris tantum de não-culpabilidade do réu, que passa, então – e a partir desse momento – a ostentar o status jurídico-penal de condenado, com todas as consequências legais dai decorrentes. Não podem repercutir contra o réu situações jurídico-processuais ainda não definidas por decisão irrecorrível do poder judiciário, especialmente naquelas hipóteses de inexistência de titulo penal condenatório definitivamente constituído. (STF HC 68465/DF, 1.ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 21.02.92, p. 2694).

Por seu turno, o Superior Tribunal de Justiça sumulou a matéria, in verbis: “É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena base”. (Súmula 444)

De igual modo o processualista Adauto Suannes acentua que somente a condenação definitiva (transitada em julgado) anterior ao fato ora em julgamento poderia ser considerada pelo magistrado ao cogitar dos chamados “maus antecedentes”.[7]

A presunção de inocência, enquanto princípio reitor do processo penal e sob a perspectiva do julgador, no dizer de Aury Lopes[8], “deve (ria) ser um princípio da maior relevância, principalmente no tratamento processual que o juiz deve dar ao acusado. Isso obriga o juiz não só a manter uma posição ‘negativa’ (não o considerando culpado), mas sim a ter uma postura positiva (tratando-o efetivamente como inocente)”.

A simples possibilidade do STF cogitar em rever o entendimento adequado e tomado anteriormente na linha dos julgados citados e da melhor doutrina já causa inquietação dentre aqueles que, acertadamente, colocam o princípio constitucional da presunção de inocência como óbice a qualquer tentativa de considerar fatos anteriores que não foram ainda decididos por uma sentença transitada em julgado (definitiva) para fins de exacerbar a pena.

Por tudo, na perspectiva garantista e de respeito aos princípios constitucionais que se coaduna com o Estado democrático de direito, é inconcebível e seria lamentável qualquer retrocesso do Supremo Tribunal Federal nesta e em outras matérias tão caras aos direitos e garantias fundamentais, no qual o homem somente pode ser tratado como um fim em si mesmo e jamais como meio ou instrumento para qualquer que seja o propósito.


[1] YAROCHEWSKY, Leonardo Isaac. Da reincidência criminal. Belo Horizonte: Mandamentos, 2005.

[2] Art. 5º, LVII da Constituição da República – “Ninguém será considerado culpado até o transito em julgado de sentença penal condenatória”.

[3] TORON, Alberto Zacharias. A Constituição de 1988 e o conceito de bons antecedentes para apelar em liberdade. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 1, n. 4, p. 74, out/dez. 1993.

[4] FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 301.

[5] BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 202.

[6] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

[7] SUANNES, Adauto. Fundamentos éticos do devido processo penal. São Paulo: RT, 1999.

[8] LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional, v. I. 5 ed. Rio de Janeiro, 2010, p. 193.

 é advogado criminalista, doutor em Ciências Penais e professor de Direito Penal da PUCMinas

 

 

Fonte: ConJur