PARECER Nº 01/2015

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1953

ASSUNTO

Projeto de Lei Complementar 34/2015, que visa delegar aos Estados-Membros e ao Distrito Federal competência legislativa sobre questões supostamente específicas relacionadas ao processo penal

 

EMENTA

Projeto de Lei Complementar 34/2015, que objetiva delegar aos Estados-Membros e ao Distrito Federal competência legislativa sobre questões supostamente específicas relacionadas ao processo penal.

  1. No Brasil vigora a forma federativa de Estado, com modelo centrífugo, em que se reconhece a existência de 3 ordens, quais sejam, a União (ordem central), os Estados (ordens regionais) e os Municípios (ordens locais).
  2. As matérias de competência privativa da União, tal como o processo penal, consistem em aplicação do modelo horizontal de repartição de competências. Admite-se a delegação da União aos Estados, por meio de lei complementar, apenas de questões específicas, e obviamente desde que não disciplinadas por leis federais. Os Estados, no exercício da competência delegada, só poderiam legislar acerca de assuntos pontuais sobre os quais houvesse vácuo legislativo, de maneira a não subverter o sistema jurídico posto.
  3. Todas as questões que se pretende delegar por meio de lei complementar foram tratadas pormenorizadamente pela União, não havendo qualquer margem para que os Estados legislem sobre a mesma matéria. Inteligência da doutrina e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
  4. A regulamentação constitucional do sistema de repartição de competências buscou estabilizar o equilíbrio federativo e a soberania nacional em esferas diversas, razão pela qual as questões atinentes ao processo penal foram posicionadas na competência legislativa privativa da União.
  5. Eventual aprovação do Projeto de Lei Complementar 34/2015 acarretaria desequilíbrios jurídicos e políticos gravosos à existência do Estado brasileiro, gerando risco de violação da soberania nacional e dos direitos fundamentais. Cada Estado-Membro passaria a criar regras próprias para o processo penal em seu âmbito territorial, de modo que o cidadão poderia ser submetido a uma investigação criminal completamente diferente a depender do Estado-Membro onde circunstancialmente se encontrasse.

 

  1. RELATÓRIO

 

Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei Complementar 34/2015, apresentado em 19/03/2015, de autoria dos Deputados Federais Leonardo Picciani (PMDB/RJ) e Carlos Sampaio (PSDB/SP).

O referido projeto visa delegar aos Estados-Membros e ao Distrito Federal competência legislativa sobre questões supostamente específicas relacionadas ao processo penal.

Por se tratar de matéria de alta relevância para a carreira dos Delegados de Polícia e para o sistema de persecução penal como um todo, gerando reflexos nos direitos fundamentais dos cidadãos, foram designados estes pareceristas a fim de analisar os contornos jurídicos do projeto legislativo à luz da Constituição Federal e da legislação infraconstitucional, bem como do entendimento da melhor doutrina e da jurisprudência, especialmente dos Tribunais Superiores.

 

  1. FUNDAMENTAÇÃO

 

2.1. CONTEÚDO DO PROJETO DE LEI E JUSTIFICAÇÃO

 

O Projeto de Lei Complementar 34/2015 possui o seguinte teor:

Art. 1º. O Congresso Nacional, nos termos do artigo 22, parágrafo único, da Constituição Federal, delega aos Estados-Membros e ao Distrito Federal, competência legislativa sobre questões específicas relacionadas à matéria processo penal:

I – Procedimento da autoridade policial no momento em que tiver conhecimento da prática da infração penal;

II – Regulamentação dos atos procedimentais do inquérito policial;

III – Atos processuais referentes à fase preliminar dos Juizados Especiais Criminais;

IV – Normas procedimentais relativas a medidas cautelares de investigação nas hipóteses de crimes hediondos e assemelhados.

Art. 2º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

 

Os parlamentares assim justificaram o projeto de lei:

A princípio cabe à União legislar sobre Processo Penal, nos termos do art. 22, I da Constituição Federal. Entretanto, o Constituinte viabilizou que determinadas questões relacionadas às matérias deste artigo pudessem ser delegadas por Lei Complementar para que os Estados-Membros e o Distrito Federal pudessem legislar, atendendo às peculiaridades de cada Estado da Federação, com realidades diferentes. A hipótese é de delegação de competência legislativa.

Cabe então analisar detidamente a doutrina e a jurisprudência acerca da matéria a fim de constatar se de fato o caso é de delegação de competência legislativa.

 

 

2.2. DIVISÃO ESPACIAL DO PODER

 

Sabe-se que as formas de Estado referem-se à projeção do poder dentro da esfera territorial, tomando como critério a existência, a intensidade e o conteúdo de descentralização político-administrativa.[1]

Nessa toada, é certo que o Brasil não adotou a forma de Estado unitário, preferindo o constituinte sedimentar a forma federativa de Estado, ex vi dos arts. 1º e 18 da Constituição Federal:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal (…)

Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.

Numa concepção que não busca analisar o movimento de formação da Federação (aglutinação de Estados soberanos ou descentralização de Estado unitário), mas a amplitude da concentração de atribuições (modelo de repartição de competência), o Estado federado pode ser classificado de 2 formas.

Quando se observar uma maior concentração de competências no ente central, estaremos diante do modelo centrípeto (ou centralizador). Lado outro, quando se notar uma maior distribuição de atribuições para os Estados-Membros, teremos um modelo centrífugo (ou descentralizador).

Nas palavras da consagrada doutrina:

Se a concepção do constituinte inclinar-se pelo fortalecimento do poder federal, teremos o federalismo centrípeto, que Georges Scelle chamou de federalismo por agregação ou associação; se, ao contrário, a concepção fixar-se na preservação do poder estadual emergirá o federalismo centrífugo ou por segregação, consoante a terminologia do internacionalista francês.[2]

O princípio federativo constitui uma das ideias determinantes de toda a organização do Estado Brasileiro, de modo que há uma umbilical relação entre a forma de Estado e o contexto nacional em que se materializam seus princípios elementares. Desde 1891, vigora a Federação como forma de Estado em nosso país, mas com peculiaridades próprias que pouco guardam similitude com países de dimensão territorial semelhante e que adotaram o sistema federal, como no caso dos Estados Unidos da América.

 Neste escopo, vale ressaltar que a introdução do sistema federativo no Brasil derivou de ato eminentemente regulamentar, qual seja, o Decreto nº 1 de 1889, o qual já destoava dos pressupostos utilizados pelos pensadores da Constituição Norte-Americana de 1787, documento este que foi a referência da moderna organização federativa no mundo. Naquele país, o federalismo nasceu da necessidade de reunião de estados pré-existentes com o fim de, abdicando de parte da soberania em nome de um ente central, fortalecerem-se para melhor enfrentarem os desafios internacionais originários de uma realidade mundial de intensas mudanças. É importante notar que os estados que formaram a federação americana já existiam, já detinham uma grande soberania, apresentando realidades sociais e políticas diversas e independentes. No Brasil, todavia, a recepção da ideia federativa ocorreu da cúpula para a base, ou seja, de um Estado Unitário criaram-se estados-membros para constituírem o novo sistema federal por necessidade de sobrevivência e de impedimento de fragmentação territorial. Assim, a realidade e vida política estadual logo no início estiveram vinculadas às decisões da União Federal, o ente que harmonia discussões estratégicas do país através da normatização de questões sensíveis à existência da Federação, como o sistema processual penal.

Esta realidade de formação histórica própria do Brasil teve influência decisiva em toda a evolução constitucional da divisão de competências entre os entes federados, com reflexos inclusive na atual autonomia dos estados-membros.

A Constituição Federal de 1988, dentro desse contexto, promoveu uma grande reformulação do federalismo brasileiro. Tal modificação envolveu o abandono do sistema previsto pela Constituição de 1967 e pela Emenda nº 1 de 1969, as quais reduziram os estados e os municípios a meros receptores dos preceitos legislados pela União Federal.  Dessa maneira, a Constituição de 1988 estabeleceu um federalismo novo e equilibrado, fruto de enormes debates e discussões que acompanharam a manifestação do estatuto jurídico e social fundamental do Brasil, garantindo um sistema de repartição de competências que foi concebido acima de tudo para garantir um sistema pacífico e harmônico entre os entes que a compõem.  

Com efeito, no Brasil vigora um modelo centrífugo, em que se reconhece a existência de 3 ordens, quais sejam, a União (ordem central), os Estados (ordens regionais) e os Municípios (ordens locais).[3]

Por isso, o poder de auto-organização dos Municípios deverá observar 2 graus, quais sejam, a Constituição Federal e a Constituição do respectivo Estado, razão pela qual é correto concluir que a Constituição de 1988 consagra um federalismo de segundo grau.[4]

 

2.3. REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS

 

A Constituição fixa, de maneira clara, a repartição de competências entre os entes federativos, que ocorre de acordo com alguns modelos. No modelo horizontal não se verifica concorrência entre os entes federativos. Cada qual exerce a sua atribuição nos limites fixados pela Constituição. É esse o modelo predominante no Brasil, podendo ser mencionadas as questões de competência privativa da União.

Já no modelo vertical, a mesma matéria é partilhada entre os diferentes entes federativos, havendo, entretanto, certa relação de subordinação no que tange à atuação deles. Como exemplo de aplicação excepcional do modelo vertical no Brasil podem ser citadas as matérias de competência concorrente entre a União, os Estados e o Distrito Federal. [5]

A competência legislativa da União foi detalhadamente disciplinada na Constituição Federal, dividindo-se em privativa (art. 22) e concorrente (art. 24), conforme a matéria a ser tratada.

O próprio Projeto de Lei Complementar indica expressamente que pretende delegar matérias de processo penal. Mesmo que não o fizesse, à mesma conclusão se chegaria em razão de as questões relativas à investigação criminal serem de natureza processual penal, como afirmou o STF:

A persecução criminal, da qual fazem parte o inquérito policial e a ação penal, rege-se pelo direito processual penal. Apesar de caracterizar o inquérito policial uma fase preparatória e até dispensável da ação penal, por estar diretamente ligado à instrução processual que haverá de se seguir, é dotado de natureza processual, a ser cuidada, privativamente, por esse ramo do direito de competência da União.[6]

 

Pois bem. A matéria processo penal se insere na competência legislativa privativa:

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

I – direito (…) processual;

 

Esse mesmo dispositivo constitucional permite que a União, por meio de lei complementar, possibilite aos Estados legislar sobre questões específicas da matéria:

Art. 22. (…)

Parágrafo único. Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo.

 

Isso significa dizer que a disciplina deve ser feita por lei federal, podendo os Estados legislar tão somente sobre questões específicas ainda não tratadas pela União, e desde que haja autorização por lei complementar.

Logo, resta evidente que os Estados, no exercício da competência delegada, só poderiam legislar acerca de assuntos pontuais sobre os quais houvesse vácuo legislativo, de maneira a não subverter o sistema jurídico posto.

A Lei Maior foi bem clara ao dispor que os Estados só podem legislar de maneira plena, e ainda assim quando a União não tiver disciplinado a matéria com normas gerais, sobre procedimento em processo penal, mas nunca sobre a persecução penal em si:

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

(…)

XI – procedimentos em matéria processual;

 

Bem assim, percebe-se que a disciplina do processo penal obedece à regra geral de horizontalidade, em que a União é quem dita as regras, podendo os Estados apenas disciplinar situações pontuais ainda não tratadas por lei federal e que não alterem o regime geral sobre a matéria, e além disso desde que autorizados por Lei Complementar.

 

2.4. ANÁLISE DAS QUESTÕES QUE SE PRETENDE DELEGAR AOS ESTADOS

 

Ao se debruçar sobre cada uma das situações que o Projeto de Lei Complementar 34/2015 almeja delegar aos Estados, conclui-se com clareza solar que a União já tratou por meio de lei federal de todas as questões, pormenorizadamente, não havendo qualquer margem para que os Estados legislem sobre a mesma matéria. Senão vejamos.

 

2.4.1. Procedimento da autoridade policial no momento em que tiver conhecimento da prática da infração penal

 

O procedimento que o Delegado de Polícia deve adotar assim que toma conhecimento da prática de infração penal é detalhadamente descrito no art. 6º do CPP, que possui nada menos que 9 incisos:

Art. 6º Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá:

I – dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais;

II – apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais;

III – colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias;

IV – ouvir o ofendido;

V – ouvir o indiciado, com observância, no que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título Vll, deste Livro, devendo o respectivo termo ser assinado por duas testemunhas que Ihe tenham ouvido a leitura;

VI – proceder a reconhecimento de pessoas e coisas e a acareações;

VII – determinar, se for caso, que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias;

VIII – ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se possível, e fazer juntar aos autos sua folha de antecedentes;

IX – averiguar a vida pregressa do indiciado, sob o ponto de vista individual, familiar e social, sua condição econômica, sua atitude e estado de ânimo antes e depois do crime e durante ele, e quaisquer outros elementos que contribuírem para a apreciação do seu temperamento e caráter.

 

Além disso, mais providências são indicadas em outros dispositivos, tais como os arts. 7º e 14 do Diploma Processual Penal:

Art. 7º Para verificar a possibilidade de haver a infração sido praticada de determinado modo, a autoridade policial poderá proceder à reprodução simulada dos fatos, desde que esta não contrarie a moralidade ou a ordem pública.

 

Art. 14. O ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade.

 

2.4.2. Regulamentação dos atos procedimentais do inquérito policial

 

A forma, lugar e modo dos atos procedimentais concretizados no bojo de um inquérito policial são descritos pelos arts. 9º, 10, 11 e 20:

Art. 9º Todas as peças do inquérito policial serão, num só processado, reduzidas a escrito ou datilografadas e, neste caso, rubricadas pela autoridade.

Art. 10. O inquérito deverá terminar no prazo de 10 dias, se o indiciado tiver sido preso em flagrante, ou estiver preso preventivamente, contado o prazo, nesta hipótese, a partir do dia em que se executar a ordem de prisão, ou no prazo de 30 dias, quando estiver solto, mediante fiança ou sem ela.

  • 1o A autoridade fará minucioso relatório do que tiver sido apurado e enviará autos ao juiz competente.
  • 2o No relatório poderá a autoridade indicar testemunhas que não tiverem sido inquiridas, mencionando o lugar onde possam ser encontradas.
  • 3o Quando o fato for de difícil elucidação, e o indiciado estiver solto, a autoridade poderá requerer ao juiz a devolução dos autos, para ulteriores diligências, que serão realizadas no prazo marcado pelo juiz.

Art. 11. Os instrumentos do crime, bem como os objetos que interessarem à prova, acompanharão os autos do inquérito.

 

Como se não fosse suficiente, os atos procedimentais devem ser praticados com observância, no que for aplicável, das regras prescritas para o processo penal em sentido estrito.

 

2.4.3. Atos processuais referentes à fase preliminar dos Juizados Especiais Criminais

 

Os atos processuais atinentes à etapa preliminar dos Juizados Especiais Criminais já se encontram suficientemente expostos na Lei 9.099/95, especialmente do art. 64 em diante. Vejamos os principais:

Art. 69. A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as requisições dos exames periciais necessários.

Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. Em caso de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima.

Art. 70. Comparecendo o autor do fato e a vítima, e não sendo possível a realização imediata da audiência preliminar, será designada data próxima, da qual ambos sairão cientes.

Art. 71. Na falta do comparecimento de qualquer dos envolvidos, a Secretaria providenciará sua intimação e, se for o caso, a do responsável civil, na forma dos arts. 67 e 68 desta Lei.

Art. 72. Na audiência preliminar, presente o representante do Ministério Público, o autor do fato e a vítima e, se possível, o responsável civil, acompanhados por seus advogados, o Juiz esclarecerá sobre a possibilidade da composição dos danos e da aceitação da proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade.

Art. 73. A conciliação será conduzida pelo Juiz ou por conciliador sob sua orientação.

Parágrafo único. Os conciliadores são auxiliares da Justiça, recrutados, na forma da lei local, preferentemente entre bacharéis em Direito, excluídos os que exerçam funções na administração da Justiça Criminal.

Art. 74. A composição dos danos civis será reduzida a escrito e, homologada pelo Juiz mediante sentença irrecorrível, terá eficácia de título a ser executado no juízo civil competente.

Parágrafo único. Tratando-se de ação penal de iniciativa privada ou de ação penal pública condicionada à representação, o acordo homologado acarreta a renúncia ao direito de queixa ou representação.

Art. 75. Não obtida a composição dos danos civis, será dada imediatamente ao ofendido a oportunidade de exercer o direito de representação verbal, que será reduzida a termo.

Parágrafo único. O não oferecimento da representação na audiência preliminar não implica decadência do direito, que poderá ser exercido no prazo previsto em lei.

Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta.

  • 1º Nas hipóteses de ser a pena de multa a única aplicável, o Juiz poderá reduzi-la até a metade.
  • 2º Não se admitirá a proposta se ficar comprovado:

I – ter sido o autor da infração condenado, pela prática de crime, à pena privativa de liberdade, por sentença definitiva;

II – ter sido o agente beneficiado anteriormente, no prazo de cinco anos, pela aplicação de pena restritiva ou multa, nos termos deste artigo;

III – não indicarem os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, ser necessária e suficiente a adoção da medida.

  • 3º Aceita a proposta pelo autor da infração e seu defensor, será submetida à apreciação do Juiz.
  • 4º Acolhendo a proposta do Ministério Público aceita pelo autor da infração, o Juiz aplicará a pena restritiva de direitos ou multa, que não importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de cinco anos.
  • 5º Da sentença prevista no parágrafo anterior caberá a apelação referida no art. 82 desta Lei.
  • 6º A imposição da sanção de que trata o § 4º deste artigo não constará de certidão de antecedentes criminais, salvo para os fins previstos no mesmo dispositivo, e não terá efeitos civis, cabendo aos interessados propor ação cabível no juízo cível.

 

2.4.4. Normas procedimentais relativas a medidas cautelares de investigação nas hipóteses de crimes hediondos e assemelhados

 

As normas procedimentais concernentes a medidas cautelares de investigação, tanto para crimes hediondos e equiparados, quanto para as demais espécies delitivas, já se encontram exaustivamente expostas no CPP e na legislação extravagante.

A título de exemplo, confira-se a fartura legislativa sobre o tema:

  • Lei 8.072/90: crimes hediondos (arts. 2º, II e §4º e 8º).
  • CPP: restituição de coisas apreendidas (CPP, arts. 118 a 124); medidas assecuratórias – arresto, sequestro, hipoteca legal e alienação antecipada (CPP, arts. 125 a 144-A); incidente de insanidade mental (arts. 149 a 154); perícias (arts. 158 a 184); busca e apreensão (arts. 240 a 250); medidas cautelares pessoais (arts. 282 a 350).
  • Lei 12.830/13: investigação criminal (arts. 1º a 3º).
  • Lei 7.960/89: prisão temporária (arts. 1º a 3º)
  • Lei 9.296/96: interceptação telefônica (arts. 1º a 9º).
  • Lei 12.037/09: identificação criminal (art. 4º).
  • Lei 9.613/98: lavagem de capitais (arts. 4º, 4º-A e 17-B).
  • Lei 9.605/98: crimes ambientais (art. 25).
  • Lei 12.850/13: crime organizado (arts. 8º a 17).
  • Lei 9.503/97: crimes de trânsito (art. 294).
  • Lei 11.340/06: crimes com violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 12).
  • Lei 11.343/06: crimes de drogas (arts. 32, 50-A, 53, 60 a 62).
  • Lei 6.001/73: crimes praticados por índios (art. 56, parágrafo único).
  • Lei 9.807/99: proteção a vítimas e testemunhas (arts. 3º, 5º e 14).

 

É tão evidente que as questões que se pretende delegar aos Estados já estão disciplinadas pela União que se chega a desconfiar da real intenção de um projeto legislativo dessa estirpe, fundamentalmente destinado a desígnios de poder e alheio a racionalidades técnicas, bem como distanciado dos interesses de transformação evolutiva do Sistema de Justiça Criminal.

 

2.5. IMPOSSIBILIDADE DE DELEGAÇÃO DE MATÉRIAS DE PROCESSO PENAL JÁ DISCIPLINADAS POR LEIS FEDERAIS

 

Como se percebe, os 4 incisos do analisado Projeto de Lei tratam de questões de processo penal já minuciosamente tratadas pela legislação federal que rege o tema.

Admitir que os Estados se imiscuíssem no tema processual penal devidamente disciplinado pela União traduziria verdadeiro atropelo legislativo, inconstitucionalidade que causaria enorme insegurança jurídica em prejuízo do cidadão. O investigado seria colocado numa posição extremamente vulnerável perante o Estado, na medida em que sequer saberia de antemão as normas a ele aplicáveis, se da União ou do Estado-membro.

Nesse sentido é que se posicionou o Supremo Tribunal Federal:

Tenho por consistentes as alegações do autor, no sentido da inconstitucionalidade da Lei distrital 1.925/1998, por invasão dessa competência, outorgada no art. 22, XI, da CR, assim porque não há lei complementar que autorize o Distrito Federal a legislar sobre fiscalização e policiamento de trânsito, como porque tal matéria, que envolve tipificação de ilícitos e cominação de penalidades, foi objeto de tratamento específico do Código de Trânsito Brasileiro, editado no exercício daquela competência privativa.[7]

 

Não podemos conceber que regras disciplinando o tema variem de unidade de Federação para unidade de Federação, conforme a opção política normativa adotada. (…)  O que ocorre, Presidente? Será que a matéria que estamos a tratar é estranha ao Código de Processo Penal? (…) Será que não temos a regência da matéria no código de Processo Penal? Temos. (…) Há regência, Presidente, no Código de Processo Penal a envolver não um simples procedimento. Diz respeito, porque há repercussão, inclusive, no campo do direito material.[8]

 

Ora, admitir que os Estados criem seus próprios sistemas processuais penais só poderia ser feito mediante Emenda Constitucional, conforme explica a doutrina:

As atribuições estão estabelecidas pelo constituinte originário e, em tese, poderiam ser objeto de modificação (por emenda), desde que a novidade, a ser introduzida, não violasse a forma federativa de Estado, bem como as demais cláusulas pétreas.[9]

 

Justamente por esse motivo é que existem Propostas de Emenda à Constituição para alterar as regras gerais da persecução penal, podendo ser citadas a PEC 430/2009 e a PEC 51/2013, cujo desiderato é criar uma Polícia única no âmbito estadual.

 

2.6. FORMAÇÃO HISTÓRICA DA FEDERAÇÃO BRASILEIRA, SOBERANIA NACIONAL E DEFINIÇÃO DE MATÉRIAS DE COMPETÊNCIA LEGISLATIVA PRIVATIVA DA UNIÃO

 

A formação do Estado brasileiro conheceu historicamente inúmeras instabilidades de natureza política e institucional, marcadas por riscos de fragmentação territorial e de questionamentos regionais à soberania federal.

Momentos mais traumáticos nesta seara remetem ao início do Segundo Reinado, principalmente durante o período da Regência, quando insurreições regionais diversas decorriam do distanciamento dos interesses de comunidades locais em relação ao Poder Central, enfraquecido em suas prerrogativas de definição de competências legislativas e de proposição de políticas públicas, revelando um imenso nível de incapacidade de atendimento de questões fundamentais às populações das distintas províncias.

Este cenário de instabilidade persistiu durante o Segundo Reinado e após a Proclamação da República, com momentos de grave risco de ruptura administrativa e institucional. Podem ser elencados com maior notabilidade alguns conflitos emblemáticos na história do Brasil, como a Revolução Farroupilha, Movimento do Contestado, Revolução Praieira, etc.

Justamente no escopo de se estabelecer uma estabilidade política e social no Estado brasileiro, a partir da Revolução de 30, decorrente de choques entre as diferentes oligarquias que protagonizavam o poder nacional, buscou-se uma maior centralização do poder político e administrativo com a regulamentação constitucional e um sistema de repartição de competências que mantivesse de modo estável o equilíbrio federativo e a soberania nacional em esferas diversas.

Nesta seara, cumpre asseverar que as matérias de Direito Penal e Processo Penal foram decisivamente categorizadas já na Constituição de 1934 como esferas de competência da União, diante do cenário de insegurança jurídica que advinha da delegação desta competência aos Estados. Neste âmbito, podemos mencionar, à guisa exemplificativa, que no antigo Distrito Federal, o inquérito policial chegou a ser abolido pelo Código de Processo Penal de 1924 vigente naquele ente, instituindo em substituição um documento apenas intitulado como “investigação”. Diante da disparidade advinda com a liberdade legiferante de Governadores, os quais modificavam continuamente os sistemas procedimentais de apuração e de produção de provas na instrução preliminar, o inquérito policial foi restabelecido pelo Decreto nº 5.515, de 13/08/1928, providência corroborada pelo Código de Processo Penal de 1940, que detalhou este procedimento policial, sua natureza e conteúdo, em consonância com os ditames processuais.

Esta medida de unificação procedimental acompanhou a deferência à União de competência privativa na produção de leis de natureza processual penal, impedindo situações como aquelas ocorrida no curso da Revolução Constitucionalista, em que legislações ad hoc de caráter processual penal criaram riscos significativos à soberania nacional, com perspectiva concreta de secessão do Estado de São Paulo frente ao Brasil como nação.

Matérias como Direito Penal, Processo Penal, Direito Eleitoral, Direito Civil, Processo Civil, Direito Agrário, Marítimo, Aeronáutico, Espacial e Direito do Trabalho foram inseridos no texto constitucional de 1988 como competência privativa da União justamente para garantir o necessário equilíbrio do pacto federativo, uma vez que correspondem a interesses cujos tratamentos normativos aplicados diferenciadamente em cada faixa do território nacional poderia gerar conflitos sociais imprevisíveis quanto aos seus desdobramentos.

 

2.7. RISCO DE CRISES INSTITUCIONAIS, VIOLAÇÃO DA SOBERANIA NACIONAL E TRANSGRESSÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS EM CASO DE EVENTUAL APROVAÇÃO DO PROJETO DE LEI

 

A delegação aos Estados de competência legislativa em nível processual penal geraria a médio prazo no Brasil situações de discrepância inaceitáveis ao pacto social pelo qual se funda nossa república federativa, tais como normas procedimentais mais afrontosas aos direitos fundamentais em um ente federado em detrimento de outro, criando-se um cenário de tamanha dissonância que poderia resultar em desequilíbrios jurídicos e políticos gravosos à existência do Estado brasileiro tal como se apresenta hodiernamente.

O regime democrático estatuído em nossa República se caracteriza justamente pela limitação do arbítrio estatal e do governante perante a soberania popular. A outorga legislativa de matéria processual penal a Governadores, por mais bem intencionados, levaria a adoção de medidas fortemente marcadas pela idiossincrasia do grupo político dominante nas entidades estaduais com reflexos nocivos aos direitos fundamentais e a um necessário sistema nacional de segurança pública com diretrizes essenciais coordenadas em nível supra-regional. Ademais, é imperioso ressaltar que aos Estados já existe ampla e até excessiva responsabilidade administrativa e operacional na provisão de segurança pública, já que a União nesta seara restringiu-se a questões afetas a seu interesse e a seus bens, conforme se aduz do artigo 144, §1º da Constituição Federal.

Outrossim, aprovar o Projeto de Lei Complementar 34/2015, que procura delegar aos Estados-membros questões já tratadas por leis federais, geraria uma insegurança sem precedentes, um verdadeiro caos na segurança pública e na persecução penal. Cada Estado-Membro passaria a se portar como uma nação à parte, uma ilha federativa, criando regras próprias para o processo penal em seu âmbito territorial.

Do dia para a noite, o cidadão poderia ser submetido a uma investigação criminal completamente diferente a depender do Estado-Membro onde circunstancialmente se encontrasse.

Admitir que cada ente federativo estadual e distrital defina os rumos do processo penal, criando 27 realidades distintas dentro do mesmo país, consubstanciar-se-ia em flagrante inconstitucionalidade e um marco trágico para o sistema jurídico pátrio.

De mais a mais, seria bastante perigoso deixar os rumos da persecução penal ao sabor das pressões políticas em âmbito estadual, tendo em conta que o Legislativo estadual e distrital não possuem eficaz blindagem contra toda sorte de pressões.

 

 

  1. CONCLUSÃO

 

Forte nas premissas indicadas e com amparo nos fundamentos elencados, conclui-se que o Projeto de Lei Complementar 34/2015 fere o ordenamento jurídico constitucional e legal, estando também em desacordo com o preconizado pela doutrina e jurisprudência.

Destarte, com o desiderato de preservar o sistema jurídico pátrio e salvaguardar os direitos fundamentais dos cidadãos, sugere-se a adoção das seguintes medidas:

 

3.1. Oficiar aos Deputados Federais autores do Projeto de Lei, bem como aos demais parlamentares, a fim de tomarem ciência da inconstitucionalidade e insegurança a ser gerada em caso de aprovação do referido Projeto de Lei Complementar.

3.2. Remeter cópia deste parecer às entidades da sociedade civil e órgãos de defesa dos direitos humanos que atuem na preservação dos direitos fundamentais dos cidadãos, dado o potencial lesivo do documento legislativo.

3.3. Promover e participar de audiências públicas, expondo os argumentos estampados no presente Parecer, a fim de conscientizar os parlamentares e a população em geral da relevância de não se aprovar um projeto de lei complementar como o ora examinado.

 

 

À consideração para conhecimento e adoção das providências que compreender necessárias.

 

 

Brasília/DF, 27 de março de 2015

 

 

Henrique Hoffmann Monteiro de Castro*

 

* Professor Titular da FACNOPAR. Professor Convidado da FAP. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Gama Filho. Especialista em Segurança Pública pela Faculdade Barddal. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Articulista e colunista em periódicos. Certificado pelo Ministério da Justiça, Ministério Público de Minas Gerais e Fundação Getúlio Vargas. Delegado de Polícia Civil do Paraná. Ex-Delegado de Polícia Civil do Mato Grosso. Ex-Advogado em Minas Gerais. Ex-Professor da UNED. Ex-Professor do Centro de Aperfeiçoamento e Formação do Ministério Público de Minas Gerais.

 

 

Rodolfo Queiroz Laterza**

 

** Professor da pós-graduação em Gestão em Segurança Pública na Universidade de Vila Velha/UVV. Professor da graduação em Direito pela FINAC/ES. Professor da Academia de Polícia Civil do Estado do Espírito Santo. Coautor, revisor e atualizador do livro “Manual do Delegado – Teoria e Prática”. Palestrante da OAB Subseção Barra/RJ em Temas de Direito Penal e Processo Penal. Mestrando em Segurança Pública pela Universidade de Vila Velha/UVV. Presidente do Sindicado dos Delegados de Polícia do Espírito Santo. Delegado de Polícia Civil do Estado do Espírito Santo.

[1] ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano Nunes Jr. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 170

[2] HORTA, Raul Machado. Direito constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 306-307.

[3] LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 472.

[4] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 60.

[5] LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 512.

[6] STF, Tribunal Pleno, ADI 3896, Rel. Min. Cármen Lucia, DJ 04/06/2008.

[7] STF, Tribunal Pleno, ADI 3.625, Rel. Min. Cezar Peluso, DJE 15/05/2009.

[8] STF, Tribunal Pleno, HC 90.900, Rel. Min. Menezes Direito, DJ 30/10/2008.

[9] LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 511.