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Novo CPC poderia reforçar segurança jurídica da afetação patrimonial

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Por Melhim Chalhub

O incidente de desconsideração da personalidade jurídica instituído pelo novo CPC (arts. 133/137) corporifica uma versão processual dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa e prioriza a autonomia patrimonial da sociedade empresária, que,ao limitara responsabilidade dos sócios, impede a constrição de seus bens em relação a obrigações da sociedade, salvo em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado por desvio de finalidade ou confusão patrimonial.

Outras situações que envolvem a autonomia patrimonial também mereceram atenção do legislador do CPC/2015, nos termos de sugestões apresentadas pelo Instituto dos Advogados Brasileiros.

Uma delas é a incorporação imobiliária, que, por constituir operação econômica separável do patrimônio da empresa incorporadora, pode ser qualificada como patrimônio autônomo e, como tal, só responde pelas suas próprias obrigações; outra é a concessão do direito de superfície, da qual resulta a bifurcação do direito de propriedade e a consequente criação de duas propriedades, uma sobre o solo e outra sobre a construção, ou plantação.

Em relação ao negócio da incorporação imobiliária, o novo CPC torna impenhoráveis os “créditos oriundos de alienação de unidades imobiliárias, sob o regime de incorporação imobiliária, vinculados à execução da obra” (art. 833, XII), preservando, assim, os recursos destinados à execução da obra e à entrega dos imóveis aos adquirentes, de modo a assegurar a realização do programa contratual.

A impenhorabilidade confere especial eficácia ao regime jurídico da afetação patrimonial instituído pela Lei nº 4.591/1964, que permite à empresa incorporadora separar do seu patrimônio cada empreendimento que vier a realizar e criar para ele um patrimônio de afetação, correspondente ao conjunto de direitos e obrigações vinculados especificamente à incorporação imobiliária afetada. Os recursos financeiros desse patrimônio de afetação “serão utilizados para pagamento ou reembolso das despesas inerentes à incorporação” (art. 31-A, § 6º).

O CPC/2015 não só se alinha a essa concepção, mas consagra importante avanço, pois, enquanto a Lei nº 4.591/1964 se limita a facultar à empresa criar um patrimônio separado e, nele, segregar os recursos para execução da obra, o novo CPC segrega compulsoriamente esses recursos pela via da impenhorabilidade. Enquanto a regra da Lei nº 4.591 se aplica restritivamente às incorporações sob regime de afetação, a impenhorabilidade do CPC/2015 se aplica a toda e qualquer incorporação, acolhendo, aliás, interpretação já sinalizada pela jurisprudência.

Outra situação que envolve separação patrimonial é o direito de superfície, que também foi objeto de limitação de responsabilidade pelo novo CPC.

A concessão do direito de superfície dá origem a duas propriedades, uma sobre o solo e outra sobre a construção, ou plantação, que compõem dois patrimônios distintos, dotados de autonomia, um formado pelos direitos e obrigações vinculados à propriedade do solo e o outro à propriedade da construção. Para conferir efetividade a essa segregação patrimonial,no campo processual, o art. 791 do novo CPC demarca os limites da responsabilidade dos titulares de cada um desses patrimônios separados, ao dispor que “[…] responderá pela dívida, exclusivamente, o direito real do qual é titular o executado, recaindo a penhora ou outros atos de constrição exclusivamente sobre o terreno, no primeiro caso, ou sobre a construção ou a plantação, no segundo caso.”

Para maior clareza, o § 1o do art. 791 dispõe que no ato de averbação da penhora, no Registro de Imóveis, sejam indicados o nome do executado, o valor do crédito e o objeto sobre o qual recai o gravame, além de outros elementos, “de modo a assegurar a publicidade da responsabilidade patrimonial de cada um deles pelas dívidas e pelas obrigações que a eles estão vinculadas” (§ 1º do art. 791).

Outras estruturas patrimoniais igualmente qualificadas pela segregação produzem esses mesmos efeitos, mas o CPC/2015 não instituiu a correspondente norma geral de limitação de responsabilidade.

São cada vez mais frequentes na sociedade contemporânea certas modalidades de negócio em que a administração de ativos é confiada a terceiros, especialmente administradores profissionais, em situações em que é necessária ou conveniente a transmissão da propriedade ao administrador, em caráter fiduciário; em outras situações a segregação patrimonial é necessária para efeito de garantia; em todas essas operações é essencial que o negócio e os interesses das partes sejam tutelados em termos precisos, visando a proteção dos beneficiários e a segurança da relação jurídica.

Situação das mais frequentes é a diversificação e multiplicação dos meios de captação de recursos do público, na qual a separação de patrimônio é indispensável para evitar que os aportes feitos pelos investidores para um negócio específico se confundam com outros bens numa única massa no patrimônio da empresa, na qual os investidores não seriam mais do que simples credores quirografários da sociedade administradora.

São situações que caracterizam a titularidade por conta de terceiros, nas quais é necessário alocar os bens e demais recursos dos investidores num patrimônio separado para tutela dos seus direitos, em geral sob forma de propriedade fiduciária.

A estrutura dos fundos de investimento ilustra bem essa situação: os bens objeto do investimento são atribuídos à sociedade administradora, mas em caráter fiduciário, e formam um patrimônio de afetação, que não se confunde com o patrimônio geral dessa sociedade e é destinado exclusivamente à satisfação dos direitos dos subscritores e ao pagamento das despesas de administração do fundo. Por comporem um patrimônio de afetação, que não é de titularidade da sociedade administradora, esses bens não podem ser penhorados ou expropriados por dívidas dessa sociedade.

Tal é a importância da limitação da responsabilidade patrimonial nesses e em outros casos de afetação patrimonial, e tão relevante a necessidade de regras claras que criem barreiras para proteção da operação, que a Lei de Recuperação de Empresa e Falência exclui dos efeitos da falência os patrimônios de afetação constituídos pela empresa falida, ao dispor que as operações econômicas objeto desses patrimônios não sofrem os efeitos da quebra e prosseguem sua atividade com autonomia, sem interferência do juízo da falência, assegurando, assim, a plena realização de sua finalidade. Assim, o patrimônio de afetação prossegue sua atividade sem interferência do juízo da falência até que cumpra sua finalidade, e só após cumprida, ou depois do advento do termo final da afetação, é que o administrador arrecadará o saldo remanescente, se houver, ou inscreverá o crédito contra a massa (Lei 11.101/2005, art. 119, IX).

As inovações do CPC/2015 em relação às situações específicas de que trata são louváveis e constituem importante evolução do direito positivo, mas a omissão em relação à blindagem dos recursos dos patrimônios de afetação, em geral, merece ser considerada quando se apresentar oportunidade de revisão legislativa.

A regra da LREF poderia orientar o preenchimento dessa lacuna.

Nesse sentido, o art. 832 do CPC/2015, que exclui da execução os bens impenhoráveis e inalienáveis,poderia estender a exclusão aos bens submetidos ao regime legal de afetação, exceto, naturalmente, em relação às obrigações relacionadas ao objeto do patrimônio de afetação, pelas quais esses bens respondem e, obviamente, podem ser objeto de constrição e expropriação.

É verdade que a falta de norma processual sobre a matéria não chega a prejudicar a eficácia da limitação de responsabilidade patrimonial prevista nas normas de direito material, mas o tratamento da matéria no âmbito do processo de execução contribuiria para reforçar a segurança jurídica em relação ao regime legal da afetação patrimonial, operando como elemento catalisador do desenvolvimento econômico e de integração dos negócios no cenário mais abrangente da economia global.

 é advogado, membro efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros e autor dos livros “Direitos Reais” (RT) e “Negócio Fiduciário” (Renovar), entre outros.

Fonte: ConJur

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