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Injusta provocação ao jurista sob violenta emoção

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Por Alexandre Morais da Rosa

A morte do médico (Jaime Gold) na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, desencadeou uma tomada de posição por parte de muitos magistrados, membros do Ministério Público, defensores, enfim, a população jurídica em geral. Tomados pelo medo, indignação, ódio, especialmente porque poderiam estar no seu lugar (identificação com o médico), iniciou-se uma profusão de declarações moralizadoras pela redução da idade penal, aumento de penas, enfim, discurso do Direito Penal Máximo.

O primeiro adolescente apreendido, com a Polícia Civil chegando a dizer que o caso estava resolvido, reconhecido que teria sido por testemunha ocular, caso tivesse um julgamento popular, poderia ser linchado ou mandado à pena de morte. Agora, depois da atuação dos defensores Djefferson Amadeus e Alberto Oliveira Junior, o primeiro adolescente não teria sequer participado da conduta. Alguns diziam que o adolescente teria muitas “passagens” pela polícia, demonstrando que vivemos um direito infracional do autor e inimigo: mora longe da zona sul e possui passagens pela polícia. Logo: autor de qualquer infração, conforme já abordamos “Quando se não se julga pela razão, mas pelos antecedentes”.

A ingenuidade e o cinismo de tal conclusão são a tônica de boa parte das investigações deste país. A estigmatização e preconceito são os protagonistas de reconhecimentos feitos com manifesta sugestão e depois falsas memórias, forçamento de indiciamentos e descrédito da defesa que não pode sequer defender, colocada na condição de inimiga da Justiça dos Bons que querem retaliação sanguinária.

Assim é que talvez seja o caso de abrirmos espaço para discutir as emoções. No discurso padrão e pasteurizado do Direito as emoções não entram na decisão policial/judicial penal. A mentira contada milhares de vezes não deixa de ser uma mentira, mesmo que a maioria se iluda e, eventualmente, acredite. A redução da complexidade, afastando o sujeito investigador/julgador que sente medo, alegria, tristeza, ira, amor, ódio, ciúme, vergonha, inveja, ressentimento, repugnância, inveja, admiração, orgulho, dentre outras manifestações de emoção, para reduzir-lhe ao sujeito totalmente racional, é a pedra de toque da ingenuidade do Direito. Diante de uma conduta criminal os cuidados para se manter distante de uma identificação ou projeção com a vítima, agressor, acusador ou defensor, tomam muito esforço dos investigadores/julgadores, muitas vezes, sem êxito. Além disso a vaidade pode tomar de assalto a subjetividade para aparecer na mídia, agradar superiores, demonstrar eficiência no esclarecimento dos fatos, mesmo que ao preço da liberdade e dignidade de terceiros, tidos como simples externalidades.

O Estado (Investigador e Juiz) como terceiro, entretanto, não é uma entidade transcendente e abstrata, mas sustentada por figuras humanas que ocupam o lugar de investigador/julgador. O dna humano, então, no lugar da tomada de decisão, foi mitigado na sua face emotiva para tornar-se a decisão exclusivamente racional. Como se pudéssemos, 100%, nos afastar de nós mesmos no momento da decisão. Pode-se objetar que o investigador/juiz não pode confundir sua vida pessoal com a pública, no que há pertinência, mas também não conseguimos manter uma vida pública desprovida de fatores humanos. Quem se ilude é mais feliz e se abraça com teoria do Direito que são tão fajutas como completas.

Em alguns lugares do mundo se fala do movimento “Law and Emotion” (Little, EUA), justamente porque, como afirma Daniel González Lagier (Emociones, responsabilid y derecho. Madrid: Marcial Pons, 2007), os filósofos do Direito relegam a emoção como um resto, uma sobra, algo que não pode entrar no orgulhoso campo racional do Direito.

Somente assim, mediante violenta emoção, pode-se entender a populista manifestação do governador do Rio de Janeiro que, metendo o “pezão” no devido processo legal, elogia a apreensão dos três adolescentes, embora apenas dois tenham, pela investigação, participado, porque a função da polícia seria prender e os indiciados já possuem antecedentes. Cabe lembrar ao governador que o Superior Tribunal de Justiça acaba de deferir quebra de seu sigilo telefônico para apuração de infrações penais. Logo, caso fosse coerente com sua lógica, já que a investigação significa “passagem”, talvez devesse se entregar. Mas o esculacho sempre é para o outro, nunca para nós mesmos.

De qualquer sorte, tanto nas manifestações, como nas investigações e nas decisões judiciais, as emoções em suas mais variadas manifestações adentram nos mecanismos humanos de apuração da responsabilidade penal, com os perigos que representa. Tanto assim que o Código Penal aponta a injusta provocação e a violenta emoção como elementos normativos. Seria melhor que não tivéssemos as emoções no Direito, como querem os juristas racionalistas, mas isto seria desconsiderar o sujeito que participa do espaço público. Daí que reconhecendo a existência, quem sabe, possamos repensar o que fazemos e buscar mecanismos de controle. O medo, a repugnância e a surpresa nos acompanharão, ainda que se finja que a razão presida exclusivamente o mecanismo de tomada de decisão.

Reconhecer as emoções, aponta Martha Nussbaum em “Justiça Poética”, significa que existe um sujeito individual e singular que é acusado, que acusa, que defende, que julga e, enfim, pode errar por força da ausência de controle emocional. Alguns tiram férias depois dos erros. O importante é convidar os leitores para iluminar o espaço omitido da emoção no Direito. Só não me venham dizer que isso não pode entrar no contexto das decisões porque não vivemos no mundo imaginado, mas no mundo inautêntico, no qual o “anafalbetismo emocional”, nos diz Lagier, exige que levemos as emoções em conta no momento de compreender a conduta criminalizada, a responsabilidade do imputado e as emoções dos atores processuais (investigadores, acusadores, julgadores, defensores, etc.). Se o leitor ficou com ódio e indignado com que escrevi, parabéns, demonstrou que a emoção participa de sua posição subjetiva no mundo. Silêncio.

 é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

Fonte: ConJur

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