HOMICÍDIO DOLOSO COMETIDO POR POLICIAL MILITAR CONTRA CIVIL:ATRIBUIÇÃO INVESTIGATIVA DA POLÍCIA CIVIL OU DA POLÍCIA MILITAR?

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Trata-se de uma grande questão que diz respeito aos limites e possibilidades da atribuição investigativa da Polícia Civil nos crimes de homicídios dolosos cometidos por policial militar contra civil. Considerando a Constituição Federal e a legislação infraconstitucional, de qual órgão é a atribuição investigativa nesses crimes?

A reposta passa pela análise da Lei nº 9.299 de 1996, a qual modificou a competência da Justiça Castrense e a natureza do crime de homicídio doloso praticado por militar contra civil, cenário confirmado por ocasião da publicação da Lei nº 13.491/17 (salvo em algumas exceções abaixo listadas). Para ilustrar o tema, segue a modificação perpetrada nos art. 9º, §§ 1º e 2º, do Código Penal Militar, e 82 do Código de Processo Penal Militar:

Art. 9º, § 1º Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida                    e cometidos por militares contra civil, serão da competência do Tribunal do                        Júri. (Redação       dada pela Lei nº 13.491, de 2017)

§ 2º Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares das Forças Armadas contra civil, serão da competência da Justiça Militar da União, se praticados no contexto: (Incluído pela Lei nº 13.491, de 2017) [1]

I – do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa; (Incluído pela Lei nº 13.491, de 2017)

II – de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante; ou (Incluído pela Lei nº 13.491, de 2017)

III – de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no art. 142 da Constituição Federal e na forma dos seguintes diplomas legais: a) Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986 – Código Brasileiro de Aeronáutica; b) Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999; c) Decreto-Lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969 – Código de Processo Penal Militar; e d) Lei no 4.737, de 15 de julho de 1965 – Código Eleitoral. (Incluído pela Lei nº 13.491, de 2017)

Art. 82 do Código de Processo Penal Militar: O foro militar é especial, e, exceto nos crimes dolosos contra a vida praticados contra civil, a ele estão sujeitos, em tempo de paz: (…) § 2º. Nos crimes dolosos contra a vida, praticados contra civil, a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à justiça comum.

Os citados parágrafos criados, inicialmente, por questões históricas e fatídicas decorrentes da participação de inúmeros membros da Polícia Militar na execução criminosa de crianças e adolescentes em nosso país[2]. Isso possibilitou o julgamento dos Policiais Militares pelo Tribunal do Júri, vinculado à Justiça Comum. Nesse sentido, é possível citar farta jurisprudência:

HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIOS QUALIFICADO TENTADO E CONSUMADO PRATICADO POR POLICIAL MILITAR CONTRA CIVIS. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI. ORDEM DE HABEAS CORPUS DENEGADA. 1. O Tribunal do Júri é competente para condenar Policial Militar, que pratica crime de homicídio contra civil, bem assim para aplicar, como efeito da condenação o disposto no art. 92, inciso I do Código Penal. Precedentes desta Corte. 2. Habeas corpus denegado. (HC 173.873/PE, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 20/09/2012, DJe 26/09/2012)

(…) 3. Situação em que, muito embora os investigados alegassem ter agido em legítima defesa, as imagens de vídeo coletadas pela Polícia Civil demonstram a deliberada intenção do policial de derrubar o civil da motocicleta, de chutá-lo quando deitado no solo e de desferir um tiro mortal, sem que o civil esboce qualquer reação nesse ínterim. Reforçam essa conclusão a necropsia que detectou tiro “de diante para trás e de cima para baixo” e a constatação, pela perícia, de que não havia arma diversa da dos policiais no local dos fatos. 4. Havendo nítidos indícios de que o homicídio foi cometido com dolo, é de se reconhecer a competência da Justiça Comum estadual para o processamento e julgamento tanto do Inquérito Policial quanto da eventual ação penal dele originada. (STJ – CC 158.084/RS, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 23/05/2018, DJe 05/06/2018)

1. A competência da Justiça Militar tem previsão constitucional, ressalvando-se a competência do Tribunal do Júri nos casos em que a vítima for civil, conforme art. 125, § 4º, da CF. Dessa forma, assentou a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, que, nesses casos, o inquérito pode ser conduzido pela Polícia Civil, pois, aplicada a teoria dos poderes implícitos, emerge da competência de processar e julgar, o poder/dever de conduzir administrativamente inquéritos policiais (CC n. 144.919/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, Terceira Seção, julgado em 22/6/2016, DJe 1º/7/2016). AgRg no RHC 122.680/PR, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 03/03/2020, DJe 09/03/2020)

Como se observa pelos julgados acima, mais do que a mudança da competência, a modificação legal descaracterizou como delito castrense os homicídios dolosos cometidos por policiais militares contra civil no exercício da função de policiamento ostensivo, de modo a concluir pela competência da Justiça Comum. Nessa linha de pensamento, também houve a mudança da titularidade para a investigação desses delitos, que passou a ser da Polícia Civil. Afinal, como se observa pelo art. 144, §§ 4º e 5º, da Constituição Federal, a Policia Militar somente investiga crimes militares, no qual não mais se insere a hipótese em tela.

É possível citar, ainda, as diretrizes elencadas na Resolução nº 08, de 21 de dezembro de 2012, editada pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, notadamente o artigo 2º:

Art. 2º Os órgãos e instituições estatais que, no exercício de suas atribuições, se confrontarem com fatos classificados como “lesão corporal decorrente de intervenção policial” ou “homicídio decorrente de intervenção policial” devem observar, em sua atuação, o seguinte:

I – os fatos serão noticiados imediatamente a Delegacia de Crimes contra a Pessoa ou a repartição de polícia judiciária, federal ou civil, com atribuição assemelhada, nos termos do art. 144 da Constituição, que deverá:

a) instaurar, inquérito policial para investigação de homicídio ou de lesão corporal;

b) comunicar nos termos da lei, o ocorrido ao Ministério Público.
II – a perícia técnica especializada será realizada de imediato em todos os armamentos, veículos e maquinários, envolvidos em ação policial com resultado morte ou lesão corporal, assim como no local em que a ação tenha ocorrido, com preservação da cena do crime, das cápsulas e projeteis até que a perícia compareça ao local, conforme o disposto no art. 6º, incisos I e II; art. 159; art. 160; art. 164 e art. 181, do Código de Processo Penal;

III – é vedada a remoção do corpo do local da morte ou de onde tenha sido encontrado sem que antes se proceda ao devido exame pericial da cena, a teor do previsto no art. 6º, incisos I e II, do Código de Processo Penal;

IV – cumpre garantir que nenhum inquérito policial seja sobrestado ou arquivado sem que tenha sido juntado o respectivo laudo necroscópico ou cadavérico subscrito por peritos criminais independentes e imparciais, não subordinados às autoridades investigadas;

V – todas as testemunhas presenciais serão identificadas e sua inquirição será realizada com devida proteção, para que possam relatar o ocorrido em segurança e sem temor;

O entendimento da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, exposto na resolução supramencionada, alinha-se com toda exposição defendida nessas breves linhas e vai além ao consolidar um procedimento para a atuação da Polícia Civil nesses crimes, de modo a refutar qualquer atividade investigativa pela Polícia Militar.

Sobre o tema, o Conselho Superior da Polícia Federal e o Conselho Nacional dos Chefes de Polícia Civil publicaram a Resolução Conjunta n° 2/2015 com o seguinte teor:

Art. 1º – Ficam definidos os procedimentos internos a serem adotados pelas polícias judiciárias em face de ocorrências em que haja resultado lesão corporal ou morte decorrentes de oposição à intervenção policial.

Art. 2º – Os dirigentes dos órgãos de polícia judiciária providenciarão para que as ocorrências de que trata o art. 1º sejam registradas com a classificação “lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial” ou “homicídio decorrente de oposição à intervenção policial”, conforme o caso.

Art. 3º – Havendo resistência à legítima ação policial de natureza preventiva ou repressiva, ainda que por terceiros, o delegado de polícia verificará se o executor e as pessoas que o auxiliaram se valeram, moderadamente, dos meios necessários e disponíveis para defender-se ou para vencer a resistência.

§ 1º – Se do emprego da força resultar ofensa à integridade corporal ou à vida do resistente, deverá ser imediatamente instaurado inquérito policial para apuração dos fatos, com tramitação prioritária.

§ 2º – A instauração do inquérito policial será comunicada ao Ministério Público e à Defensoria Pública, sem prejuízo do posterior envio de cópia do feito ao órgão correcional correspondente.

§ 3º – Os objetos relacionados a evento danoso decorrente de resistência à intervenção policial, como armas, material balístico e veículos, deverão ser apreendidos pelo delegado de polícia.

§ 4º – O delegado de polícia responsável pela investigação do evento danoso com resultado morte deverá requisitar o exame pericial do local, independentemente da remoção de pessoas e coisas.

§ 5º – O delegado de polícia poderá requisitar registros de comunicação e de movimentação das viaturas envolvidas na ocorrência, dentre outras providências.

§ 6º – O delegado responsável pela investigação representará pelas medidas cautelares necessárias à identificação de todos os policiais envolvidos na ação, ainda que figurem entre aqueles qualificados na comunicação do fato.

§ 7º – Sem prejuízo do disposto no parágrafo anterior, o delegado poderá requisitar a apresentação dos policiais envolvidos na ocorrência, bem como de todos os objetos que posam interessar à investigação, sob pena de responsabilidade administrativa e criminal em caso de descumprimento da requisição.

§ 8º – No caso de morte do resistente, é obrigatória a juntada do respectivo laudo necroscópico ou cadavérico aos autos do inquérito policial.

Em síntese, atualmente, o entendimento, na forma da Constituição, da lei e da jurisprudência, é no sentido de que a Polícia Civil possui a atribuição exclusiva para investigar crimes dolosos (tentados ou consumados) cometidos por um policial militar contra a vida de um civil.

Autor: Delegado Bruno Taufner Zanotti, Delegado de Polícia, Diretor de Prerrogativa da ADEPOL DO BRASIL

[1] Sobre o tema, encontra-se em trâmite no STF a ADI 5901, com parecer favorável da Procuradoria-Geral da República, que tem por objeto exatamente a inconstitucionalidade do art. 9°, § 2º e seus incisos, da Lei nº 13.491/17.
[2].        Nesses termos, o voto do Ministro Celso de Mello na ADI 1494 MC, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 09/04/1997.