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Desmilitarização, ciclo completo de polícia e outros delírios legislativos: os tenebrosos presságios da investigação criminal no Brasil

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Por Carlos Eduardo de Araújo Rangel

Introdução

Atualmente, ganha notoriedade o efervescente debate legislativo sobre a necessidade de imprimir uma nova roupagem ao sistema de segurança pública nacional como meio de alcançar maior eficácia no combate à criminalidade.

Nesse cenário, temas como a desmilitarização das polícias militares estaduais, a adoção do chamado ciclo completo de polícia e a unificação dos distintos aparelhos policiais passam a figurar como protagonistas de uma pretensa reforma constitucional, voltada para um instantâneo e não menos falacioso método de solução definitiva de toda a sorte de mazelas que secularmente contribuem para o degradante quadro de segurança pública nacional.

A partir do reavivamento de elementos vestigiais típicos de um estado policialesco, herdados por influência de regimes totalitários e fascistas, pretende o poder constituinte reformador prestigiar o empoderamento de estruturas estatais repressoras, voltadas para o endurecimento dos meios de controle social.

Na contramão de um processo penal democrático, os diversos projetos legislativos até então propostos, distanciam-se cada vez mais da adoção de um procedimento de investigação criminal moderno, inspirado pelos ditames constitucionais da ampla defesa, do contraditório, do devido processo legal e da presunção de inocência, como forma de efetiva consolidação da cláusula geral de dignidade da pessoa humana.

A concepção arquitetônica constitucional da segurança pública

A segurança pública, nos moldes de sua estrutura constitucional, figura como tópico integrante do Título V, que cuida da defesa do Estado e das instituições democráticas.

Na lição de Uadi Lammêgo Bulos[1], a segurança pública presta-se à manutenção da ordem interna do Estado, a partir da preservação do equilíbrio nas relações de convivência social.

A harmonia dessas relações sociais, instrumentalizadas pela sistemática constitucional de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, deflagra-se através de aparelhos estatais de vigilância, controle, prevenção e repressão de eventuais condutas que, de algum modo, promovam a sua perturbação.

Desta forma, o legislador constituinte, ao estipular os órgãos responsáveis por esse mister, nos termos do artigo 144 da Carta Fundamental, estabeleceu subdivisões funcionais quanto ao âmbito de atuação, federal ou estadual, bem como quanto à atribuição específica, ostensiva ou repressiva.

Nessa linha, a atividade de investigação criminal, em seu aspecto preambular de coleta de elementos indiciários de autoria e materialidade delitiva, restou de uma forma geral consagrada como missão constitucional das instituições policiais de natureza civil; enquanto, por outro vértice, as ações de vigilância e prevenção, típicas de uma atividade policial ostensiva, foram destinadas às polícias de origem militarizada.

Aclarada a supradita divisão funcional, a questão primordial a ser enfrentada reside na real necessidade de uma remodelagem das funções constitucionais dos aparelhos policiais.

Importa salientar que as ponderações realizadas pelos defensores dessa “necessária” reestruturação da segurança pública partem fundamentalmente de uma premissa genérica e não menos ilusória, baseada exclusivamente na comparação do standard de eficiência entre os modelos policiais estrangeiros e o brasileiro.

Com espeque nesse utópico paradigma, improvável outra conclusão que não a evidente glorificação de modelos policiais de países como Espanha, França, Inglaterra ou Estados Unidos, em detrimento do arquétipo brasileiro, cuja fórmula, para dramatizar ainda mais o impacto da comparação, repete-se em nações de notório subdesenvolvimento como Guiné Bissau e Cabo Verde.

Uma pretensa alteração na roupagem constitucional dos aparelhos policiais não pode se pautar na simples reprodução de modelos alienígenas. Não antes de se perquirir, com profundidade, os reais elementos presentes na conformação da criminalidade brasileira, bem como as peculiaridades estruturais de cada uma das instituições policiais integrantes do ordenamento.

Por mais uma vez, faz-se imperioso destacar o contumaz desprezo aos fundamentos da moderna criminologia crítica[2] e, por consequência natural, o gradual afastamento das “soluções legislativas”, em prejuízo dos verdadeiros anseios realidade social brasileira.

Na lição de Juarez Cirino dos Santos[3], o sistema de justiça criminal, objeto de estudo da criminologia crítica, condensa mecanismos estatais de atribuição da criminalidade pelos processos de criminalização, mediante proteção seletiva de bens jurídicos pela lei penal e repressão seletiva de sujeitos pela tríade Polícia, Justiça e Prisão.

Por essa via, diante da ausência de um projeto político voltado para a efetiva redução das desigualdades, a solução ilusória dos problemas sociais daí decorrentes exsurge legitimada por novos e velhos discursos punitivo-repressivos, dentre os quais a tolerância zero, o etiquetamento, o neopenalismo e, por ora, a “remodelagem” estrutural da segurança pública nacional.

Com efeito, considerando que as instituições policiais, em sua atual formatação, não foram sequer dotadas de uma organização sólida, diante da evidente carência de recursos humanos e estruturais dos respectivos entes federativos, o discurso pela sua imperiosa reformulação representa, sob este enfoque, um verdadeiro retrocesso à vetusta metodologia de enrijecimento do Estado Policial.

Impressiona a notória vocação do parlamento brasileiro em perseguir uma solução legislativa imediatista, com fulcro na crença de que remendos e costuras do texto constitucional, instantaneamente, converter-se-ão em instrumentos de perfectibilização das demandas sociais mais relevantes.

Ciclo completo de polícia, unificação e desmilitarização: das proposições legislativas ao renascimento do Leviatã

No âmbito legislativo, encontram-se em franca tramitação as mais diversificadas propostas de emenda à Constituição Federal (PEC 430/09; PEC 432/09; PEC 51/13; PEC 321/13; PEC 423/14; PEC 431/14; PEC 89/15; PEC 127/15), cujo teor guarda, como ponto de partida, a alteração do modelo estrutural da segurança pública nacional.

Outrossim, não obstante à multiplicidade de projetos nesse sentido, as reformas constitucionais ora visadas congregam dois pontos de convergência.

O primeiro refere-se à sua origem comum, curiosamente traduzida por um incomensurável esforço legislativo de parlamentares representantes das instituições policiais militarizadas. Por óbvio, o debate político-partidário desinteressa ao presente trabalho, vez que, para além da ausência do mínimo lastro técnico-cientifico, expressa, por via tortuosa, a defesa de anseios privados voltados unicamente para um ilimitado empoderamento institucional, sobejado, por si só, na contramão do próprio escopo constitucional.

Por sua vez, o segundo aspecto de congruência diz respeito à presença de temas como a desmilitarização, a unificação e o ciclo completo de polícia, como meios instrumentais de uma alardeada “revolução” do sistema de segurança pública.

Em breve síntese, faz-se necessário explicitar que o denominado ciclo completo de polícia representa a reunião das atribuições de prevenção e vigilância com as funções de investigação criminal, num mesmo aparelho policial.

A seu turno, a desmilitarização refere-se à dissolução da estrutura militarizada do aparato policial, típica das forças armadas, conferindo-lhe nova roupagem dentro de uma perspectiva de esteio civil.

Por fim, a intitulada unificação remonta a uma verdadeira comistão entre as instituições policiais de distinta natureza constitucional, atribuindo-lhes uma única formatação estrutural.

Importa ressaltar que a análise dos variados arranjos legislativos até então apresentados encerra uma esquizofrênica simbiose entre os citados institutos que, para além de sua duvidosa constitucionalidade, não sinaliza nenhum avanço real na esfera da segurança pública.

A singela leitura de tais projetos de reforma denuncia a presença de um tecnicismo legislativo débil e ineficaz.

Sob uma verdadeira cortina de fumaça, representada pela tradicional inserção de normas constitucionais de conteúdo programático, condenadas a uma aplicabilidade futura e não menos utópica, revelam-se ultrajantes asserções que, sob a falsa promessa de alcançar o eldorado da segurança pública, pretendem agigantar aparelhos policiais ultrapassados e de vocação repressora.

Um ponto crucial para o debate impõe às seguintes indagações: a agonizante situação atual da segurança pública decorre de mera falha organizacional do artigo 144 da Carta Republicana? Ou será fruto de um incessante descompromisso estatal com investimentos estruturais e de recursos humanos nos órgãos que tradicionalmente o compõem?

Nesse diapasão, admitir a viabilidade da simples miscigenação conceitual dos temas ciclo completo de polícia, desmilitarização e unificação das polícias, instrumentalizadas por essas aparas do texto constitucional, significa acenar positivamente ao primeiro questionamento, reduzindo toda a complexa problemática que conota o tema a um mero desarranjo do constituinte originário.

Não se afigura razoável acreditar que o ingênuo realinhamento das instituições policiais, desprovido de sólidos investimentos e de uma profunda análise dos processos de criminalização, há de inaugurar uma nova era na área de segurança nacional.

Dessa forma, resta evidente que a voracidade legislativa pela adoção, isolada ou mesmo conjuntural, dessas novas molduras de policiamento traduz, a bem da verdade, um obscuro retorno do estado policialesco, outrora vivenciado pela sociedade brasileira num lastimável e não tão distante passado.

Conclusão: Investigação Criminal e a “reforma” hipertrófica dos aparelhos estatais de controle: um fúnebre retrocesso à fogueira e seus velhos inquisidores.

A investigação criminal, enquanto momento processual que legitima o poder punitivo do Estado, constitui um passo fundamental no sistema de justiça criminal.

Atentos a essa função instrumental, os ordenamentos jurídicos ditos democráticos guardam, em suas bases principiológicas, garantias individuais de índole processual, voltadas ao asseguramento do status dignitatisdos cidadãos eventualmente submetidos à persecução criminal.

Nessa linha, assevera Aury Lopes Júnior[4]:

“Todo poder tende a ser autoritário e precisa de limites, controle. Então, as garantias processuais constitucionais são verdadeiros escudos protetores contra o (ab) uso do poder estatal”.

Desta forma, a observância dos preceitos constitucionais da ampla defesa, do contraditório, da não culpabilidade e da duração razoável do processo representa um caminho único e primordial ao exercício constitucional da atividade de investigação criminal, enquanto modelo preambular e instrumental que legitima o jus puniendi estatal.

Sob esse enfoque, Carnelutti nos ensina que a própria via-crúcis trilhada durante todas as etapas da persecução processual penal encerra uma punição antecipada, retratada como a misure di soffrenza spiritualeou di umiliazione.[5]

É inegável o devastador poder da investigação criminal, vez que, em sua função endoprocedimental, instrumentalizada por diversas medidas ad cautelam, dotadas de caráter pessoal ou real, possibilita a restrição da liberdade e do patrimônio do investigado, mesmo antes do advento de um decreto condenatório.

Realizadas tais considerações preliminares, o panorama atual da investigação criminal brasileira nos remete a um temerário e não menos sombrio futuro.

As pretensas reformulações do modelo constitucional da segurança pública, ora representadas pela intenção legislativa de introdução do denominado ciclo completo de polícia, da desmilitarização ou mesmo da unificação, representam uma nefasta amplificação do poder estatal de investigação criminal, legitimando a atuação, nesse campo, de agências policiais tipicamente opressoras, cujo modelo verticalizado e tirânico tão bem representa a herança viva dos anos de chumbo.

O ilimitado empoderamento desses aparelhos policiais, por vezes encobertos de discursos punitivos de fácil aceitação social, como “tolerância zero”, “lei e ordem” e “segurança nacional”[6], enseja um inevitável retrocesso da atividade de investigação criminal.

A histórica ostentação dos suplícios[7], uma herança medieval punitiva ainda enraizada no nosso sistema de justiça criminal, assume uma nova moldura, a partir da denominada espetacularização do processo penal[8], onde o exercício da investigação criminal, que ora se pretende amplificar com sua indiscriminada concessão a instituições tipicamente opressoras, consolida um traço marcante do autoritarismo punitivo estatal.

A ordem constitucional vigente é impositiva no sentido de que a investigação criminal é um momento processual de garantias, não de opressão.

Na contramão dessa diretriz, ao invés de viabilizar uma definitiva ruptura do ranço inquisitório da apuração criminal preambular, persegue o legislador um retrocesso às trevas, buscando reacender uma nova fogueira pelas mãos de velhos inquisidores.

 

Fonte: Empório do Direito

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