ACADEMIA DE POLÍCIA, O GOLPE NA OLX: INTERMEDIAÇÃO DIGITAL FRAUDULENTA E TORPEZA TRILATERAL

0
643

Por Adriano Sousa Costa, Rodrigo Foureaux e Anderson Marcelo de Araújo

A torpeza bilateral e o Direito Penal
A torpeza bilateral (utriusque turpido), apurada no contexto de crimes patrimoniais, é caracterizada pela existência concreta de má-fé por parte da vítima, bem como, por óbvio, do criminoso. E a cupidez da vítima é o que, inclusive, atrai-lhe para a armadilha montada pelo verdadeiro golpista.

A existência de torpeza da vítima não afasta a incidência de tipos penais incriminadores em face do criminoso, a exemplo do furto mediante fraude, estelionato etc., consoante doutrina e jurisprudência majoritárias.

O fato de a vítima se afastar de padrões de boa-fé não elide a tipicidade de crimes patrimoniais perpetrados pelos golpistas, porquanto tal circunstância (boa-fé) não figura como elementar para a consumação dos referidos tipos penais; mas isso não indica que tal circunstância não será sopesada quando da fixação da pena-base (artigo 59 do Código Penal).

Não há simetria no tratamento dado pelo Direito Penal aos envolvidos que agem com tal sorte de torpeza. Um, na pior das hipóteses, acredita que está praticando um crime (criminoso-putativo); o outro realmente realiza um injusto penal. Ainda que a “vítima” acredite estar enganando alguém, o fato ilícito se restringe ao seu imaginário, pois se trata de crime putativo. Já o criminoso real é aquele que, ao final, vai atingir o seu objetivo no plano concreto, após seduzir a vítima gananciosa para um alçapão e, depois, desapossá-la de parte de seu patrimônio (no sentido figurado, é claro).

Os requisitos para a configuração da torpeza da vítima
Nem toda vítima de estelionato age com má-fé. Mas, quando o fizer, para ser considerada sua conduta torpe, ela precisa ter ciência de que alcançaria o proveito desejado mediante a perda indevida de algo por alguém. Aqui, o jogo é sempre de soma-zero, onde alguém tem que perder para que ela ganhe. Isso tudo embebido necessariamente por fraude, seja ela comissiva ou omissiva.

O golpe do bilhete premiado é um bom exemplo de torpeza bilateral. Uma “vítima” acredita que vai se beneficiar pela compra de um bilhete de loteria premiado (por preço muito menor do que o valor do prêmio a ser recebido), mas, na verdade, o resultado prático será outro. Nesse caso, a tal “vítima” pode até acreditar que está praticando abuso de incapaz (artigo 173 do Código Penal), mas tal ilícito é putativo. O criminoso real, na verdade, é o indivíduo que se dizia vulnerável e pretenso beneficiário do valor do bilhete que teria em mão (e seus asseclas).

A torpeza trilateral, o pacto de silêncio e o golpe na OLX
Nem sempre essa relação de torpeza vai se restringir a dois polos (um potencial criminoso-putativo e um criminoso-real). Por exemplo, no caso do golpe de intermediação digital, vulgarmente conhecido como golpe na OLX, percebem-se três polos de má-fé, por isso o surgimento da nomenclatura torpeza trilateral.

Na torpeza trilateral, percebem-se três figuras muito bem delimitadas: um estelionatário real, uma vítima e um ofendido. Veremos a frente mais sobre essas diferenças conceituais.

Enfim, nesse tipo de crime, o real estelionatário cria um contexto que lhe permite intermediar a relação comercial entre duas “vítimas”, utilizando-se de um pacto de silêncio convencionado entre ele e cada uma delas isoladamente.

Tome como exemplo que Fulano anuncia na OLX a venda de um celular avaliado em R$ 10 mil. O agente criminoso visualiza que o celular está à venda, entra em contato com Fulano e o convence a retirar o anúncio do site da OLX, pois garante a compra do produto no valor de R$ 10 mil. Diz que o referido celular será usado para pagar uma dívida com Sicrano (suposto credor). Fulano até aceitaria valor menor pelo produto, por exemplo R$ 9.500 mil, mas, por ter encontrado um comprador que pagará os R$ 10 mil, sente-se em vantagem, pois auferirá um valor maior do que aquele que estava disposto a receber. É induzido, portanto, a manter o silêncio sobre essa negociação, pois o credor receberá o tal celular em pagamento em um valor maior do que ele vale, sugerindo-se que padecerá de algum tipo de prejuízo negocial.

O suposto credor que o criminoso mencionou para Fulano, na verdade, não existe ainda, e o criminoso começa a procurar por um interessado na comprar do celular, pois pediu para o vendedor retirar o produto da OLX.

Ao aparecer o interessado, que é Sicrano, o criminoso promete-lhe que venderá o celular por um preço mais acessível, mas diz que o celular se encontra na posse de Fulano, alguém que lhe deve dinheiro (ou algo semelhante). Sicrano precisará encontrar com Fulano para ver o produto e dizer para o criminoso se dele gostou; mas é induzido a manter um pacto de silêncio, ou seja, não dar nenhum detalhe sobre a negociação.

Por falta de troca adequada de informações, Fulano entrega o produto para Sicrano, ao passo que este transfere o valor acordado para a conta indicada pelo estelionatário (e não para a de Fulano).

O cenário de crise está devidamente montado. E ambos os negociantes (Fulano e Sicrano), quando percebem o golpe, passam a se culpar reciprocamente, pois percebem que o silêncio do outro envolvido foi essencial para que ele tenha alcançado algum tipo de prejuízo negocial.

A consumação do crime: do pagamento ou da entrega do produto
Após conseguir que o dinheiro da vítima seja encaminhado para uma conta-bancária indicada por ele, para garantir verossimilhança ao negócio, o criminoso fomenta que haja a traditio do objeto negociado.

Só tempo depois é que esses dois indivíduos percebem que caíram em um golpe, pois nenhum dinheiro é repassado pelo intermediário-criminoso ao proprietário do objeto (Fulano). Mas o objeto já está na posse da vítima (Sicrano) e uma confusão enorme se arma.

De toda sorte, é inegável que o crime se consuma quando da transferência ou do depósito de valores, e não pela tradição do objeto.

Por fim, é importante dizer que, ainda que exista o tal pacto de silêncio, somente o criminoso responde por tais infrações penais, pois entre ele e os demais envolvidos na negociação não há unidade de desígnios acerca do crime a ser praticado, o que afasta a possibilidade de coautoria e de participação.

As consequências da tradição e da entrega do bem ao proprietário
Com a entrega do bem de um para o outro, aquela relação jurídica se torna ainda mais complexa.

Após descobrirem terem sido partes de um golpe, é comum que tais envolvidos passem a se acusar, principalmente por saberem que cada um manteve sigilo sobre parte relevante da negociação, o que lhes colocou colaborativamente naquela situação.

Fato é que devem todos ser encaminhados à delegacia de polícia para a documentação do fato e para a apreensão do objeto de litígio. Se a vítima deliberar por não representar criminalmente em desfavor do criminoso, o Delegado deverá documentar o fato e, não apreendendo o bem, justificar que não foi tomada nenhuma atitude, porquanto ausente a condição de procedibilidade inicial.

Contudo, se houver representação da vítima, o delegado de polícia deverá ouvir as partes e apreender o produto do crime (até mesmo para materializar a infração penal).

Daí, surge dúvida se o próprio delegado de polícia poderia restituí-lo. E a resposta parece positiva, já que não existe dúvida sobre o direito do reclamante (Fulano), qual seja o proprietário real do celular. Afinal, o negócio jurídico que alicerçou a referida tradição padece de graves vícios, o que obriga ao restabelecimento do status quo. E não há que se falar que lavratura de termo de depósito em favor do proprietário, porquanto essa alternativa não parece ser permitida em sede policial. Lembre-se de que o artigo 120, parágrafo 4º, do CPP traz o depósito judicial e a remessa da controvérsia ao juízo cível como solução para dúvidas sobre a legitimidade patrimonial.

Se a entrega do objeto vai ser realizada para o proprietário (Fulano), fortalecesse a hipótese de que a vítima real é aquele que transfere o dinheiro ao estelionatário (Sicrano). Afinal, o prejuízo efetivo recai sobre aquele que desembolsa os valores, porquanto a tradição do bem não tem o condão de transferir a propriedade, pois absolutamente viciada. Nesse sentido, vide o que ensina o §2º do artigo 1.267 do Código Civil: “não transfere a propriedade a tradição, quando tiver por título um negócio jurídico nulo”.

A vítima-real e da competência para apuração do crime de estelionato
O dono do objeto (Fulano) até sofre parte dos efeitos do crime (transitórios e nulificáveis), mas isso não determina a consumação do injusto penal, porquanto a transferência dos valores para a conta do criminoso é o que o caracteriza.

A nosso ver, há que se diferenciar a vítima, que é titular do bem jurídico atingido pelo criminoso, do ofendido, o qual sofre prejuízo por causa do cometimento do crime, tendo direito à reparação do dano.

Por isso, no presente caso, a vítima do crime é quem transfere o dinheiro para o criminoso (Sicrano), na esperança de estar pagando o valor do objeto negociado. O vendedor que entrega o bem (traditio), mas vê quase de imediato sê-lo reintegrado, é mero ofendido (Fulano).

Isso tem uma importância prática no caso concreto, pois é preciso saber quem foi a vítima real do crime, pois o endereço dela é que servirá para fixar a competência apuratória do estelionato em tela (após a Lei nº 14.155/2021). Isso nos termos do artigo 71, §4º, do CPP.

A capitulação jurídica do fato criminoso
A dinâmica criminosa aqui debatida se amolda à nominada fraude eletrônica, prevista no parágrafo 2º-A do artigo 171 do CP. Tal modalidade eletrônica de estelionato ocorre pois o criminoso consegue dados essenciais sobre o produto e sobre o proprietário do objeto, por meio virtual, ou seja, de um terceiro induzido a erro. Note que quem fornece as informações sobre o produto é o vendedor, e não quem arca verdadeiramente com o prejuízo econômico (vítima).

Nesse caso, foi feliz o legislador, pois, no parágrafo 2º-A do artigo 171 do CP, ao mencionar que as informações alcançadas não são necessariamente fornecidas pela vítima, permitiu, então, amoldar tal modalidade de golpe na fraude eletrônica. E as penas são muito mais duras do que as do caput do artigo 171 do CP (reclusão de quatro a oito, além de multa).

A boa-fé negocial e a compensação de culpas no âmbito cível
Fato é que este enredo ardiloso é causa determinante para que a vítima (Fulano) realize o depósito ou a transferência bancária para o nome de um terceiro que sequer participa da avença.

A história mentirosa, da qual o ofendido participa ativamente, é uma das causas para que a vítima não se alerte para o fato de beneficiário do depósito não ser aquele que lhe mostra, pessoalmente, o objeto negociado.

A má-fé de ambos parece clara. Por isso, há que se dividir os prejuízos entre aqueles que, utilizando-se de mentiras, contribuem para a inexatidão e segurança da referida negociação.

A boa-fé tem a incumbência de determinar um modelo paradigmático de atitudes de honestidade para cada um dos envolvidos no negocio jurídico, pois, do contrário, devem ser responsabilizados civilmente.

A doutrina ensina que a boa-fé em sua função de controle (artigo 187 do Código Civil) e de integração (artigo 422 do Código Civil) tem por finalidade caracterizar a responsabilidade civil daquele que a inobserva. E o Código Civil, firme no propósito do princípio da boa-fé, afirma expressamente que sua violação é causa de ato ilícito e, por conseguinte, obriga a repará-la.

“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.”

O cenário avaliado é de concorrência de culpas, porquanto se percebe que é imprescindível a omissão informacional dos negociantes para a concretização do golpe, colaboraram para o resultado lesivo, devendo implicar em di”visão proporcional dos prejuízos. Se a compensação de culpas não encontra guarida no Direito Penal, no Direito Civil é um norte-magnético para a divisão da responsabilidade dentre aqueles que agiram indevidamente.

O ofendido não é alçado ao patamar de vítima pelo fato de ser obrigado a reparar. Na verdade, tal obrigação indenizatória deriva da sua falta de boa-fé negocial, a qual conduziu a vítima ao prejuízo.
Mas nem sempre os tribunais vem decidindo assim [1]. Restringem-se a nominar a culpa do criminoso, mas não abordam a torpeza dos demais envolvidos na relação comercial espúria [2].

Da responsabilidade civil
A nosso ver, esse tipo de decisão judicial fomenta a torpeza dos negociantes, além de concretizar o prejuízo imediato somente em face da vítima, permitindo-se ao ofendido sair ileso no âmbito civil, ainda que tenha agido em desconformidade com a boa-fé que dele era esperada.

Desse modo, segundo o nosso entendimento, não pode ser obrigada a vítima-real a esperar eventual condenação de seu algoz (o criminoso real) para se ver reparada, ao menos parcialmente, principalmente quando é notória a ofensa ao princípio da boa-fé por parte do ofendido. Até porque o deslinde da investigação pode nem ser satisfatório.

E essa possibilidade de clivagem da responsabilidade civil não precisa ser necessariamente feita pela metade, podendo variar segundo o grau de culpabilidade de qualquer das partes, posto que a concorrência de culpas entre proprietário e vendedor pode encontrar variações casuísticas. As lições doutrinarias de Luiz da Cunha Gonçalves são escorreitas nesse sentido:

A melhor doutrina é a que propõe a partilha dos prejuízos: em partes iguais, se forem iguais as culpas ou não for possível provar o grau de culpabilidade de cada um dos envolvidos; em partes proporcionais aos graus das culpas, quando estas forem desiguais. Note-se que a gravidade da culpa deve ser apreciada objetivamente, isto é, segundo o grau de causalidade do ato de cada um. É evidente que a reparação não pode ser dividida com justiça sem se ponderar.”

O Código Civil também trata a concorrência de culpas nos artigos 944 e 945 , vejamos:

“Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano.

Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização.

Art. 945. Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano.”

Claro que, quando e se ocorrer eventual condenação do criminoso, não se afasta a possibilidade de ambos se verem ressarcidos desses prejuízos oriundos da compensação de culpas (no âmbito cível), já que a condenação por indicar os valores indenizatórios consentâneos com a reparação do prejuízo de tais negociantes. Tudo nos termos do artigo 387, inciso IV, do Código de Processo Penal.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2022-ago-09/academia-policia-golpe-olx-intermediacao-fraudulenta-torpeza-trilateral

Adriano Sousa Costa é delegado de Polícia Civil de Goiás, autor pela “Juspodivm e Impetus”, professor da pós-graduação da Verbo Jurídico, MeuCurso e Cers, membro da Academia Goiana de Direito, doutorando em Ciência Política pela UnB e mestre em Ciência Política pela UFG.

Rodrigo Foureaux é juiz de Direito do Tribunal de Justiça de Goiás, membro da Academia Mineira de Letras João Guimarães Rosa, mestre em Direito, Justiça e Desenvolvimento pela Escola de Direito do Brasil e especialista em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes.

Anderson Marcelo de Araújo é policial civil do Distrito Federal, ex-delegado de polícia de SC e ex-oficial do Ministério Público do RS.