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Emenda da Bengala tem tropeços e afronta Constituição Federal

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Por Luciano Ferraz

1. Controvérsias sobre a Emenda da Bengala
Em meio ao acirrado momento político pós-eleição presidencial de 2014, o Congresso Nacional promulgou e publicou a Emenda Constitucional 88/2015, ordinariamente batizada como “Emenda da Bengala”. A emenda, oriunda da PEC 457/05, proposta pelo senador Pedro Simon (PMDB-RS), manteve, durante a tramitação legislativa, a redação inicial, tendo sido apensada à PEC 5/2003, de autoria do deputado Luiz Antônio Fleury do (PTB-SP), à PEC 103/2003, apresentada pelo deputado Pedro Corrêa (PP-PE), bem como à PEC 436/2005, formulada pelo deputado Gonzaga Mota do (PSDB-CE). Os artigos constitucionais alterados pela EC 88/15 após a incorporação ao corpo permanente e ao ADCT da Constituição, apresentam o seguinte teor, respectivamente:

Artigo 40 […]
§ 1º
II- compulsoriamente, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição, aos 70 (setenta) anos de idade, ou aos 75 (setenta e cinco) anos de idade, na forma de lei complementar;

Artigo 100. Até que entre em vigor a lei complementar de que trata o inciso II do § 1º do artigo 40 da Constituição Federal, os Ministros do Supremo Tribunal Federal, dos Tribunais Superiores e do Tribunal de Contas da União aposentar-se-ão, compulsoriamente, aos 75 (setenta e cinco) anos de idade, nas condições do artigo 52 da Constituição Federal.

A regra inserta no artigo 40, parágrafo 1º, inciso II, da Constituição da República diz respeito à aposentadoria dos servidores públicos, incluindo-se, portanto, entre as matérias típicas do seu regime jurídico (artigo 1º da EC 88/15). De maneira especial, o novo artigo 100 do ADCT (artigo 2º da EC 88/15) permeia a sensível relação entre os Poderes Constituídos, porquanto atinente à situação funcional de magistrados e membros do TCU.

Não se tem dúvida de que a EC 88/15 acarretará amplo debate no meio político, jurídico e acadêmico. As primeiras notícias publicadas na imprensa nacional revelam essa polvorosa, a começar pela entrevista concedida à Agência Senado pelo Presidente do Congresso, senador Renan Calheiros (PMDB-AL), que sustentou a aplicação de nova sabatina no Senado aos Ministros dos Tribunais Superiores e TCU (= recall), como condicionante para a ampliação quinquenal do exercício funcional dos Ministros dos Tribunais Superiores e do TCU.

O ministro Marco Aurélio do STF e a Associação dos Magistrados Brasileiros reagiram, alegando tratar-se de “humilhação” e de mecanismo de politização do Poder Judiciário, respectivamente. O mesmo ministro Marco Aurélio, desta feita em conjunto com o colega decano do STF, Ministro Celso de Mello, defendeu, ainda, a extensão da nova regra da aposentadoria aos demais poderes.

O Tribunal de Justiça de Pernambuco já teve a oportunidade de conceder liminar ao desembargador Nivaldo de Medeiros Correia Filho, para que se lhe garantir a permanência no serviço público pela aplicação da nova disposição do artigo 100 do ADCT. O argumento central é o de que a regra da emenda “deve ser imediatamente implementada, sem que para tanto haja a necessidade de vigorar lei complementar para efetivação do que dispõe a referida Emenda Constitucional, levando-se considerações o caráter nacional do Poder Judiciário” (trecho do voto do Des. Bartolomeu Bueno).

Além disso, com menos de uma semana de vigência da EC 88/15, o STF foi provocado pela AMB, Anamatra e Ajufe (ADI 5.316, rel. min. Luiz Fux), que questionam a constitucionalidade do recall previsto na parte final do artigo 100 do ADCT (nova sabatina do Senado para o alargamento do exercício funcional dos ministros). De acordo com o site do STF, as associações sustentam que “o constituinte derivado acabou por mesclar critérios de acesso com critérios de continuidade ou permanência no cargo, ‘criando uma norma manifestamente violadora da garantia da vitaliciedade da magistratura’”. Em reforço ao argumento, esclarecem que “se esses magistrados terão de se submeter, novamente, à disciplina do artigo 52 da Constituição Federal, que é expresso ao dizer da ‘aprovação prévia’, ‘por meio de voto’ após a ‘arguição pública’ daquele que tenha sido ‘escolhido’, parece lógico supor que está condicionando também a uma nova nomeação, já que se trata de uma ‘aprovação prévia’”.

2. Inconstitucionalidade do recall na sabatina
A expressão “nas condições do artigo 52 da Constituição Federal” (presente no artigo 2º da EC 88/15) é deveras inconstitucional. Primeiro porque estabelece condicionamentos à garantia da vitaliciedade, que constitui um dos pilares constitucionais da independência do Poder Judiciário e do TCU (artigo 95, I da Constituição); segundo porque cria nova forma de interferência do Poder Legislativo no exercício funcional dos membros dos Tribunais Superiores e do TCU, a violar, portanto, o princípio constitucional da separação dos poderes (artigo 60, parágrafo 4º, inciso III da Constituição).

Note-se que não se trata de atuação do Poder Legislativo em face de ilícitos eventualmente praticados pelos magistrados e membros do TCU (situação que justificaria a intervenção de um Poder sobre o outro), mas de submissão do exercício funcional e independente desses agentes ao “cajado” político partidário do Senado, numa espécie de controle posterior e desproporcional de atividade (veiculado por emenda de iniciativa parlamentar).

Nesse sentido, a jurisprudência do STF registra que “a lei estadual, ao estabelecer a obrigação de que os magistrados estaduais apresentem declaração de bens à Assembleia Legislativa, criou modalidade de controle direto dos demais Poderes pela Assembleia Legislativa – sem o auxílio do Tribunal de Contas do Estado – que não encontra fundamento de validade na Constituição Federal. Assim, faltando fundamento constitucional a essa fiscalização, não poderia a Assembleia Legislativa, ainda que mediante lei, outorgar a si própria competência que é de todo estranha à fisionomia institucional do Poder Legislativo. Inconstitucionalidade formal da lei estadual, de origem parlamentar, na parte em que pretende submeter aos seus ditames os magistrados estaduais. Violação da autonomia do Poder Judiciário (artigo 93 da CF). Ação direta julgada procedente” (ADI 4232, relator (a): min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 30/10/2014, Acórdão Eletrônico DJe-021 Divulgação: 30/01/2015 Publicação 02-02-2015).

Ademais, numa avaliação literal do artigo 52, III, “b” da Constituição apresenta-se a ausência de logicidade do novo preceito. É que ali somente se prevê a sabatina do Senado para a escolha dos Ministros do TCU indicados pelo Presidente da República (três) e não daqueles indicados pelo Congresso Nacional (seis), conforme previsão do artigo 73, parágrafo 2º da Constituição. É dizer, o recall somente teria aplicação, no caso dos Ministros do TCU, àqueles indicados pelo Poder Executivo? Os indicados pelo Congresso Nacional estarão infensos ao recall na sabatina ou não fariam jus à prerrogativa da extensão funcional?

3. Constitucionalidade do novo artigo 40, parágrafo 1º, II (artigo 1º da EC 88/15): contornando o possível vício de iniciativa
O artigo 1º da EC 88/15, que alterou a redação do artigo 40, §1º, II da Constituição parece-me constitucional. O constituinte reformador contornou uma possível discussão quanto à inconstitucionalidade formal do preceito, quando ao invés de simplesmente alterar a idade de aposentadoria compulsória dos servidores públicos em geral na Constituição, submeteu a questão à disciplina da Lei Complementar posterior.

Com isso, ele respeitou o disposto no artigo 61, parágrafo 1º, II, “c” da Constituição (com a redação dada pela EC 18/98), que reserva ao presidente da República a iniciativa de leis que disponham sobre servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria (norma de reprodução obrigatória para todas as entidades políticas), bem como o artigo 93, VI da Constituição, que exige lei complementar para dispor sobre a aposentadoria e pensão dos membros da magistratura, observado o artigo 40.

Antecipo que a questão não haverá de ser disciplinada em uma única Lei Complementar, como pode sugerir uma primeira leitura do dispositivo. No âmbito do Poder Judiciário, por força do artigo 93, VI da Constituição e do caráter nacional da magistratura, a extensividade do exercício funcional haverá de ser disciplinada uniformemente para todas as esferas, em lei complementar de iniciativa do STF. Essa disciplina será extensível aos Ministros do TCU (artigo 73, parágrafo 3º), bem como aos Conselheiros dos Tribunais de Contas Estaduais (artigo 75). No âmbito do Ministério Público, a teor do artigo 128, parágrafo 5º, a Lei Complementar será de iniciativa do Procurador-Geral da República.

Para os servidores públicos em geral, entretanto, o princípio federativo e a reserva de iniciativa do artigo 61, parágrafo 1º, II “c” da Constituição — norma de reprodução obrigatória em todos os âmbitos federativos (ver, por todos, no STF, a ADI 3.627/AP) — deixam ver que a disciplina da questão dar-se-á em Leis Complementares federais, estaduais e municipais, conforme o caso, necessariamente pela iniciativa dos respectivos Poderes Executivos, pela pertinência com o regime jurídico único dos servidores.

Com isso teremos a possibilidade de entidades federativas optarem por não regulamentar o novo dispositivo constitucional, mediante Lei Complementar, fazendo com que não haja a ampliação, para 75 anos, do limite de aposentadoria compulsória nos respectivos âmbitos. Essa será, portanto, uma opção política (o preceito, no particular, tem eficácia limitada, situação comprovada pela disposição de eficácia imediata do ADCT).

4. Inconstitucionalidade da limitação do artigo 100 do ADCT (artigo 2º da EC 18/15)
No que concerne ao artigo 2º da EC 88/15, que incluiu o artigo 100 do ADCT, a inconstitucionalidade reside na limitação da aplicabilidade da regra transitória aos membros dos Tribunais Superiores — situação que a meu ver não se coloca quanto aos Tribunais e Conselhos de Contas Estaduais e Municipais, por conta da dimensão material do artigo 75 da Constituição, que determina aplicação compulsória do modelo federal de controle externo aos Estados e Municípios (princípio da simetria): “o modelo federal de organização, composição e fiscalização dos Tribunais de Contas, fixado pela Constituição, é de observância compulsória pelos Estados, nos termos do caput artigo 75 da Carta da República.” (ADI 4.416 MC, relator (a): min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 06/10/2010, Processo Eletrônico DJe-207. Divulgação 27/10/2010 Publicação 28/10/2010 LEXSTF v. 32, n. 383, 2010, p. 84-96 RT v. 100, n. 905, 2011, p. 178-184)

A limitação efetivada pelo novo artigo 100 do ADCT viola o caráter nacional do Poder Judiciário e o princípio da isonomia, à medida que estabelece diferente estatuto jurídico de aposentadoria compulsória a magistrados dos Tribunais Superiores em detrimento de seus pares de outros Tribunais e instâncias.

O STF já teve a oportunidade de afirmar a unidade e o caráter nacional do Poder Judiciário quando decidiu que “magistratura, Remuneração. Limite ou teto remuneratório constitucional. Fixação diferenciada para os membros da magistratura federal e estadual. Inadmissibilidade. Caráter nacional do Poder Judiciário. Distinção arbitrária. Ofensa à regra constitucional da igualdade ou isonomia. Interpretação conforme dada ao artigo 37, inc. XI, e § 12, da CF.” (ADI 3.854 MC, relator (a): min. Cezar Peluso, Tribunal Pleno, julgado em 28/02/2007, DJe-047 Divulgação 28/06/2007 Publicação 29/06/2007 DJ 29/06/2007 PP-00022 Ement VOL-02282-04 PP-00723 RTJ VOL-00203-01 PP-00184).

Por outro lado, não se vislumbra a necessidade de interpretação extensiva do artigo 100 do ADCT aos membros do Ministério Público e aos servidores públicos em geral. É possível que o constituinte institua regimes jurídicos diversos de aposentadoria a agentes públicos de categorias distintas, tal como fez a constituição originária e a Emenda Constitucional nº 18/98 relativamente aos militares.

6. Conclusões
Portanto, para além das discussões políticas em torno da EC 88/15 e seu efeito prático de impedir que atual Presidente da República indique novos Ministros ao STF, questões jurídicas também se colocam na análise da emenda da bengala, a saber:

a) A instituição da nova sabatina (= recall) aos Ministros dos Tribunais Superiores e membros do TCU é inconstitucional e deve ser corrigida pelo STF, porquanto violadora da garantia da vitaliciedade e do princípio da separação dos poderes, estabelecendo hipótese desproporcional de controle de um Poder sobre o outro;

b) A interpretação do novo artigo 40, §1º, II da Constituição à luz das disposições de reserva de iniciativa e do princípio federativo, deixa ver que haverá diferentes Leis Complementares, com diferentes iniciativas, para regulamentar a extensão temporal da aposentadoria compulsória, a depender da categoria e da unidade federativa envolvidos;

c) A limitação da aplicabilidade da regra transitória do artigo 100 do ADCT aos Ministros dos Tribunais Superiores viola o caráter nacional do Poder Judiciário e o princípio constitucional da isonomia, devendo ser estendida a todos os magistrados e membros dos Tribunais de Contas (embora para estes particularmente se entenda que o artigo 75 já determina a medida).

Luciano Ferraz é advogado e professor associado de Direito Administrativo na UFMG.

Fonte: ConJur

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