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Emenda da Bengala é irreprochável tanto na forma quanto no conteúdo

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Por Roberto Wanderley Nogueira e Ricardo Antônio Lucas Camargo

No dia 7 de maio as Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal promulgaram a Emenda Constitucional 88, resultado da aprovação da famosa “PEC da bengala”, como ficou conhecida a insistente tentativa, agora integrante da ordem jurídica, de elevar de 70 para 75 anos a idade de aposentadoria compulsória de servidores públicos.

Longe de procurar fundamentar exaustivamente nossa opinião sobre a novel alteração constitucional, conquanto sem nos eximir do dever de proclamar ser a mesma contrária ao interesse público por favorecer, no caso dos membros do Poder Judiciário, um “engessamento” da jurisprudência, ante o retardo da renovação dos quadros dos integrantes da magistratura e ao mesmo tempo propiciar uma genuína gerontocracia nos tribunais, pretende-se apenas meditar sobre os aspectos jurídicos que envolvem a aplicação dessa norma. Efetivamente a mesma assim dispõe em seu artigo 1º:

“O art. 40 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:

‘Art. 40…………………………………………………………………….
§ 1º ………………………………………………………………………..
II – compulsoriamente, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição, aos 70 (setenta) anos de idade, ou aos 75 (setenta e cinco) anos de idade, na forma de lei complementar.’”

O dispositivo aí referido, por sua vez, descreve, dentre as espécies de aposentadoria dos servidores públicos, a de natureza compulsória, a qual na tradição de nosso direito constitucional republicano, a partir da Carta Política de 1946, sempre foi aos 70 anos de idade. Agora poderá passar para os 75 anos, só que “na forma de lei complementar”. Portanto a lei complementar é que dirá em que casos, condições e para quais categorias de agentes públicos será permitida a permanência no serviço público até os 75 anos.

Temos aí o que na teoria constitucional se chama de “normas constitucionais de eficácia limitada”, ou seja, aquelas que dependem “da emissão de uma normatividade futura, em que o legislador ordinário, integrando-lhe a eficácia, mediante lei ordinária, lhes dê capacidade de execução em termos de regulamentação daqueles interesses visados”, como bem pondera Michel Temer nos seus “Elementos de direito constitucional”, 5ª edição, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1989, página 27, citando lição do constitucionalista pátrio José Afonso da Silva e do italiano Vezio Crisafulli. No caso da EC 88 a norma infraconstitucional exigida para conferir eficácia à regra constitucional ora introduzida é a lei complementar, aquela que nos termos do artigo 69 da Constituição vigente somente pode ser aprovada pelo quórum qualificado da maioria absoluta dos legisladores federais e que ocupa o segundo lugar na hierarquia normativa, conforme previsto pela mesma Lei Fundamental em seu artigo 59, inciso II.

A despeito dessa clareza solar e sem sombras da norma em epígrafe, começam a surgir medidas liminares concedidas em mandados de segurança preventivos impetrados por membros de tribunais estaduais contra os seus presidentes para não deflagrarem os procedimentos de aposentação e nos quais os seus ilustres impetrantes, na iminência de se tornarem septuagenários, defendem que a expressão “na forma de lei complementar” seria inconstitucional porque feriria o princípio da isonomia, se cotejada com a norma constitucional transitória posta no artigo 100 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) pelo artigo 2º da EC 88/2015. Assim enuncia essa norma:

“Até que entre em vigor a lei complementar de que trata o inciso II do § 1º do art. 40 da Constituição Federal, os Ministros do Supremo Tribunal Federal, dos Tribunais Superiores e do Tribunal de Contas da União aposentar-se-ão, compulsoriamente, aos 75 (setenta e cinco) anos de idade, nas condições do art. 52 da Constituição Federal.”

Como se vê, até que venha a lei complementar exigida para dar eficácia à elevação da idade da aposentadoria compulsória, somente os que ocupam os cargos de ministros da Suprema Corte, do Tribunal de Contas da União e dos tribunais superiores é que poderão ficar até os 75 anos de idade, e mesmo assim “nas condições do art. 52 da Constituição Federal”, isto é, após a aprovação de sua continuidade no exercício de tão elevados cargos pelo Senado Federal, conforme prevista para a investidura nos mesmos segundo as regras das alíneas “a” e “b” do inciso III do artigo 52 da Constituição, por sua vez repetidas nos artigos 73, parágrafo 2º, inciso I (ministros do Tribunal de Contas da União), 101, parágrafo único (ministros do Supremo Tribunal Federal), 104, parágrafo único (ministros do Superior Tribunal de Justiça), 111-A (ministros do Tribunal Superior do Trabalho) e 123 (ministros do Superior Tribunal Militar). Esse assentimento da alta câmara legislativa, por mais absurdo que possa parecer, foi imposto pela norma em foco certamente para que os mandatários daquele que é o único titular da soberania (artigo 1º, parágrafo único da Constituição Federal) possam avaliar se tais autoridades pelo menos aparentam condições de lucidez para prosseguirem no exercício de suas altas funções, inobstante estejam em idade avançada, dentre outros escrutínios. A esse procedimento dá-se o nome de “accountability” e isto nada tem a ver com violação dos predicados da própria magistratura.

Portanto, nem mesmo os ministros do STF, do TCU e dos tribunais superiores foram contemplados de imediato com a benesse de poderem permanecer no exercício de seus cargos até os 75 anos de idade. A regra geral é a exigência de lei complementar que regulamente o instituto. Até que seja aprovada e entre em vigor a lei complementar requerida pela nova norma constitucional a continuidade dependerá, para essas altas autoridades da República, de aprovação pelo Senado Federal. E ao que se sabe da simples leitura do texto constitucional juízes e desembargadores não são investidos com aprovação do órgão legislativo. Até os que são promovidos por merecimento ou os que são escolhidos para integrarem as Cortes nas vagas do quinto constitucional (CF, artigo 94) de modo algum são sabatinados pelo parlamento. Por isso, não se pode sob o pretexto de isonomia pretender que lhes seja aplicada a regra do artigo 100 do ADCT, introduzida pelo artigo 2º da EC 88.

Aliás, exatamente por existir uma carreira entre a magistratura de primeiro e de segundo graus, cujos integrantes são investidos na primeira instância por concurso público de provas e títulos, é que não se aceitou no Senado, que foi a Casa legislativa onde nasceu a proposta agora aprovada pela Câmara dos Deputados, fazer a extensão aos mesmos dessa regra transitória erigida pelo artigo 2º da EC 88. Isso está expresso na justificativa da emenda 3 à PEC 42/2003, quando ali disse o senador que a apresentou:

“Ocorre que os membros das Cortes superiores, diferentemente dos demais servidores públicos e dos magistrados de tribunais de primeira e segunda instância, cuja carreira se inicia após o ingresso no serviço público por concurso público de provas e títulos, ingressam na função por escolha do Presidente da República, dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada. Não têm planos de carreira, nem promoção.”

Assentada a diferença entre essas categorias da magistratura — a das Cortes Suprema e Superiores e a das justiças ordinárias —, que é revelada pela própria Constituição segundo se infere de seu artigo 93, incisos I a III e pela Lei Orgânica da Magistratura Nacional (lei complementar 35/1979) ao dedicar um título inteiro à “Magistratura de carreira” (artigos 78 a 88), é consectário lógico que não se pode aplicar a uma todas as regras constitucionais destinadas à outra. Isonomia ou igualdade perante a lei (CF, artigo 5º, caput) não significa conferir o mesmo tratamento normativo aos que exercitam idêntica atividade (cá, a atividade judicante) e sim aos que nesse mister não diferem entre si sob os aspectos tomados em consideração pela norma de regência (conforme José Afonso da Silva em seu Curso de direito constitucional positivo, 31ª edição, São Paulo, Malheiros editores, 2008, página 216). E a norma de regência aqui considerada é a da investidura/desinvestidura do cargo, regra essa que, não é demais repetir, é diversa entre os ministros e os desembargadores.

Descortina-se, pois, a inconstitucionalidade das liminares concessivas de extensão da norma do artigo 100 do ADCT, acrescida pelo artigo 2º da EC 88/2015, aos juízes membros das diversas Cortes de Justiça, sejam estaduais sejam federais, inclusive em situações de evidente corporativismo, pois obtidas em ações mandamentais decididas não pelo Supremo Tribunal Federal — o interesse de toda a  magistratura ou de mais da metade dos membros do tribunal de origem atrai a competência da Corte Suprema consoante o artigo 102, inciso I, alínea “n”, da Constituição — e sim por desembargadores colegas dos impetrantes e até muitas vezes interessados a curto ou médio prazo no desfecho favorável da lide para futuramente se beneficiarem da mesma solução (refiro-me aos julgadores já próximos dos 70 anos). 

Por conseguinte, somente por alteração operada por lei complementar os membros da magistratura de carreira poderão permanecer na judicatura até os 75 anos de idade, é isso o que se deduz da parte final do inciso II do parágrafo 1º do artigo 40 da Constituição Federal. E mais: essa lei complementar terá de ser proposta ao Congresso Nacional pelo Supremo Tribunal Federal haja vista estar reservada ao mesmo a iniciativa do Estatuto da Magistratura, segundo está expresso no caput do artigo 93 da Carta Política vigente, não sendo demais lembrar que até então esse Estatuto é a lei complementar 35/79, cujo artigo 74 dispõe ser a aposentadoria dos magistrados vitalícios compulsória aos 70 anos de idade. É assim que continua sendo. Pelo menos por enquanto.

Quanto a uma suposta agressão à “isonomia” — indiscutivelmente, cláusula pétrea —, é de se recordar que sua amplitude não é tal que cerceie totalmente a possibilidade de o legislador estabelecer tratamentos específicos, tomando em consideração dados perfeitamente justificáveis, sob o ponto de vista “racional”. E, por outro lado, o próprio Supremo Tribunal Federal já rejeitou a possibilidade de ultrapassar funções legislativas, mesmo por este fundamento — o de isonomia — para o fim de proceder a aumento de vencimentos de servidores (Súmula 339) ou de estender benefícios fiscais a quem não tenha sido expressamente contemplado na disposição que os preveja (Recurso extraordinário 405579/PR, Relator: Min. Joaquim Barbosa. RTJ 224, p. 560; Agravo regimental no agravo de instrumento 630997/MG, Relator: Min. Eros Grau, DJ-e 18 maio 2007; Recurso extraordinário  344331/PR. Relatora: Min. Ellen Gracie, DJU 14 mar 2003).

Qual outro “direito fundamental” estaria, em tese, a ser agredido pela Emenda Constitucional em questão? Se não a isonomia, nenhum dos demais, sejam patrimoniais, sejam não-patrimoniais, se apresentaria como vulnerado. Não se demonstra, aliás, sequer a pertinência em face de quaisquer outros direitos fundamentais, a menos que se queira considerar como tais as garantias postas no artigo 94 da Constituição Federal, que, a bem de ver, ressalvada a irredutibilidade de remuneração, não constituem “direitos subjetivos” propriamente ditos, já que sua justificação, em termos republicanos, está em que possam exercer, sem constrangimentos outros que não sejam a fidelidade à Constituição e às leis válidas, a missão de compor, em caráter definitivo, os conflitos de interesses que lhes sejam postos a exame.

Haveria, talvez, agressão ao princípio da separação dos Poderes? Desenganadamente negativa a resposta. Primeiro, porque as disposições concernentes às Emendas Constitucionais não se confundem com as concernentes às das demais espécies de ato legislativo, com o que a questão concernente à iniciativa se resolve pelos incisos em que se desdobra o caputdo artigo 60 da Constituição, não se lhe aplicando, destarte, o que se contém no parágrafo 1º do artigo 61 ou no inciso II do artigo 96 da Constituição Federal. Segundo, porque as prerrogativas inerentes à condição de magistrado continuam preservadas — prerrogativas que, mais uma vez, não se confundem com “direitos subjetivos”, já que constituem, a bem de ver, atribuições instrumentais, voltadas a viabilizarem o exercício independente da função, e estariam protegidas contra o poder de Emenda muito mais neste campo do que propriamente no da proteção dos direitos e garantias fundamentais —, bem como o núcleo essencial das respectivas funções: não há nem imposição de removibilidade, nem subtração dos poderes de administração da Corte em relação aos seus serviços, nem o comprometimento da vitaliciedade, pois tal conceito não colide, como nunca colidiu, com a possibilidade de aposentadoria compulsória.

A cláusula federativa também não se encontra, de qualquer sorte, ferida, quer porque os tribunais superiores têm um tratamento distinto dos Tribunais de Apelação já a partir do Texto Originário, quer porque o caráter nacional do Judiciário é objeto de disciplina na Lei Orgânica a que se refere o artigo 93 da mesma Constituição Federal.  Os tribunais de Justiça — que são aqueles em relação aos quais se poderia, eventualmente, agitar a questão, já que os tribunais superiores e os tribunais regionais federais estão ligados, em termos de regime jurídico, à legislação federal — continuam a se organizar de acordo com o que dispuserem as Constituições Estaduais e as leis de organização judiciária, sendo acessíveis mediante promoção por antiguidade e por merecimento, em relação aos magistrados de carreira, e mediante o procedimento de preenchimento das vagas destinadas à Ordem dos Advogados do Brasil e ao Ministério Público, e a Emenda Constitucional em questão não os afeta em nada, neste particular.

Por outro lado, há uma condicionante, na Emenda Constitucional 88, de 2015, para que o magistrado não seja compulsoriamente aposentado aos 70 anos, que é a submissão a uma sabatina. Esta, bem longe de traduzir uma ingerência do Legislativo no âmbito da função jurisdicional, vem a apresentar-se como uma prestação de contas que, em verdade, dialoga com o conceito de “accountability”, cuja base é justamente a da inadmissibilidade, nos tempos atuais, de exercício de qualquer poder sem que possa, pelo menos, explicar a decisão tomada. Esta explicação é dada, no varejo, a cada provimento jurisdicional, pela exigência de fundamentação — posta no inciso IX do artigo 93 da Constituição Federal, já em seu Texto Originário, como uma garantia do Estado de Direito, dialogando com a experiência dos julgamentos secretos e sem fundamentação que ocorriam em relação à arguição de relevância da questão federal no regime constitucional anterior —, e, caso pretenda permanecer após o implemento dos 70 anos, vem a explicação do conjunto da sua obra. Justamente porque a judicatura não traduz, em si mesma, qualquer exercício de direito subjetivo do magistrado, mas verdadeiramente um poder-dever que lhe é conferido constitucionalmente, é perfeitamente sustentável que se lhe exija, caso não deseje compulsoriamente retirar-se aos 70 anos, aos representantes do povo, apresentar a respectiva prestação de contas. Caso ele não pretenda permanecer após os 70 anos, não lhe será sequer exigível o retorno ao Legislativo.

Em realidade, os conceitos que são muitas vezes confundidos são os de “validade normativa” e “simpatia normativa”: não é o fato de um ato legislativo qualquer ter vindo ao mundo para atender a interesses mesquinhos que o fará necessariamente inválido, assim como não é o fato de interesses magnânimos o haverem determinado que o fará válido. Referenciais para os valores, existem vários, e a vida social somente se pode viabilizar mediante o estabelecimento de referenciais comuns, leia-se, “universais”. E, até o presente momento, dentre todos os referenciais, o que logrou maior “universalidade”, maior capacidade de convencimento, independentemente da formação familiar, religiosa, classista ou outra qualquer que seja, não foi outro senão o direito positivo. Utilizar referenciais corporativos para o fim de identificar o que seja ou não válido para uma sociedade que não se compõe apenas dos membros da corporação, é esquecer que existem corporações e corporações, e que cada uma delas entende que o seu próprio interesse vale mais do que o de todas as outras, e o que é suficiente para convencer o titular do interesse próprio não o é para convencer o titular de interesse alheio. A identificação rousseauniana da “Lei” com a expressão da “vontade geral” muito deve à própria concepção de “Lei” apresentada por Santo Isidoro de Sevilha em suas “Etimologias”, como voltada à realização da “utilidade geral” e não apenas à de quem a estabelece, e da qual em muito Santo Tomás de Aquino derivou, articulando-a com a categoria aristotélica da “justiça distributiva”, a noção de “bem comum”, em sua “Suma Teológica”.

Desse modo, concluímos que a Emenda Constitucional 88/2015 é irreprochável assim na forma quanto em seu conteúdo, conquanto perfeitamente sistêmica em face da Constituição Federal em vigor.

 é juiz Federal em Recife, doutor em Direito pela UFPE, professor da Faculdade de Direito do Recife (UFPE) e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).

Ricardo Antônio Lucas Camargo é doutor em Direito pela UFMG, professor da Faculdade de Direito da UFRGS, membro do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública (IBAP).

Fonte: ConJur

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