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Discussão estrutural detém o Ministério Público no combate à corrupção

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Nestes cinzentos dias de nossa república, uma discussão estrutural sobre o efetivo papel que detém o Ministério Público no combate à corrupção, notadamente a partir do berço ou nascedouro do controle da administração pública, tem revelado incógnitas posições.

Foi no âmbito do Ministério Público de Contas da União (que oficia junto ao Tribunal de Contas da União) que, nos idos de 2012, o procurador Marinus Marsico trouxe ao público problemas com a refinaria de Pasadena e, antes, em 2010, das manobras envolvendo a Petrobras, bem como dos suspeitos financiamentos promovidos pelo BNDES. Também lá, para ficarmos somente nesse exemplo nacional, é que surgiram veementes defesas para que a espinha dorsal da operação “lava jato” (conduzida pelo MPF) não fosse desarticulada com a assinatura de acordos de leniência entre as empreiteiras e a Controladoria Geral da União, medidas encabeçadas pelo procurador Júlio Marcelo de Oliveira. Nos Estados, inúmeros casos de repercussão igualmente podem ser citados, tudo a demonstrar a unidade e o bom funcionamento do Ministério Público brasileiro, certo?

Infelizmente não.

Paradoxalmente, o maior golpe à autonomia do MP no combate à corrupção (a partir do Controle Externo, ou seja, de sua atuação nos Tribunais de Contas), veio, nesta última semana, da própria Procuradoria-Geral da República (ADI 5.254).

E a tese, por mais assustadora que pareça, pode ganhar foros não inicialmente imaginados caso vingue entendimento segundo o qual o Ministério Público, para o desempenho de suas funções, não necessita de autonomia (bastaria a independência funcional de seus membros).

Prato cheio para os inimigos do parquet, cujo peso, agora, é arremessado nos ombros do Supremo Tribunal Federal.

Entre o falar e o fazer, como nos adverte Paulo Freire, não deveríamos encontrar hiatos. Dizia o velho mestre que é “fundamental diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, de tal forma que, num dado momento, a tua fala seja a tua prática”.

O discurso de unidade do MP esbarra nos rudimentos de posturas de certos grupos, os quais, desde a Constituição de 1988, não toleram a atuação de um ramo especializado do MP nos Tribunais de Contas. Alijados em sua pretensão inicial, buscam um “terceiro turno”, por vias que passam ao largo dos mais de 20 anos de desenvolvimento após o julgamento da ADI 789, que reconheceu a especialidade centenária do órgão. Mas a sociedade e as instituições já não são mais as mesmas. O Supremo Tribunal Federal, conforme testemunham recentes decisões, também mudou, avançando em seu paradigmático entendimento. Nesta contramão apenas o interesse público perde.

Ainda vigendo decisão unânime do Conselho Nacional do Ministério Público, segundo a qual se reconhece “ao Ministério Público de Contas a natureza jurídica de órgão do Ministério Público brasileiro e, em consequência, a competência do CNMP para zelar pelo cumprimento dos deveres funcionais dos respectivos membros e pela garantia da autonomia administrativa e financeira das unidades, controlando os atos já praticados de forma independente em seu âmbito, e adotando medidas tendentes a consolidar a parcela de autonomia de que ainda carecem tais órgãos” [1], sai a alta cúpula da Procuradoria da República de encontro à unidade e independência do MPC do Estado do Pará, cuja harmoniosa constituição autônoma, no arranjo com os demais órgãos republicanos daquela unidade federativa e sociedade, pretende-se, 22 anos depois, desconstituir (inclusive, demandando-se a urgência cautelar)

Trata-se, sem dúvida, de investida que tende a desbancar os demais Ministérios Públicos de Contas do país e o ardor com que militam perante os Tribunais de Contas no combate ao desvio de recursos públicos.

Em bom tempo, foi o que o Ministério Público de Contas do Paraná rechaçou, em nota de apoio ao MPC do Pará (www.mpc.pr.gov.br): “As funções do Parquet, em gênero, e as do MPC, em especial, estão elevadas ao status de ‘patrimônio da cidadania’ e, portanto, de direito fundamental: ‘se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito [no caso a LC 02/92–PA], ele se incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania’ [2]. O Parquet de Contas situa-se em posição indelével e estratégica nos Tribunais de Contas brasileiros, cuja ‘atuação direta no combate à corrupção evita a malversação e o desperdício das verbas públicas, que poderão ser utilizadas para efetivar os direitos fundamentais sociais, como a educação, a saúde, a segurança e o lazer’ [2]” (…) “A essencialidade, inerente às prerrogativas constitucionais do Ministério Público, tem efeito direto na coletividade, pois ‘é este órgão quem serve de porta-voz dos anseios sociais, propiciando que tais posições se efetivem, bem como fazendo com que os direitos fundamentais sociais não estejam à disposição dos poderes estatais constituídos’ [2], ficando resguardados das pressões momentâneas, inclusive das que atualmente têm passado nosso país, de que é exemplo também, agora, a referida ADI. ‘A proibição do retrocesso deve ser concebida como importante conquista civilizatória, e assegurada pela ordem constitucional brasileira, porque o seu conteúdo impeditivo possibilita que sejam reprimidos quaisquer planos políticos que venham minimizar os direitos fundamentais, servindo, ainda, como parâmetro para o controle de constitucionalidade.’ [2]”

Com efeito, é a própria PGR que põe em prova de fogo um dos pilares da ação ministerial, a saber: se a atuação independente dos membros do parquet está ou não relacionada à autonomia administrativo-financeira do órgão. Caso se assente negativamente para o MPC, o que impedirá que se desenvolva entendimento de que não se trata de uma garantia essencial (ontológica) do próprio Ministério Público, a exemplo do que ocorria em seu desenho anterior a 1988?

O panorama aqui descrito reverbera, de fato, no discurso de unidade do Ministério Público brasileiro, recém noticiado?

Ou o Ministério Público que oficia no Controle Externo é uma locução equivocada da Constituição Cidadã e uma ilusão de ótica do STF, não se tratando, em desafio à objetividade jurídica, de Ministério Público?

Há mais de uma década o consagrado constitucionalista José Afonso da Silva assim sentenciava: “Não é fácil conciliar o reconhecimento de que o Ministério Público junto aos Tribunais de Contas é ‘órgão de extração constitucional’ e tem ‘configuração jurídico-institucional’ diferente do Ministério Público comum (…) com a afirmativa, em contrário, (…) [de que] aquele Ministério Público ‘não dispõe de fisionomia institucional própria’. De duas uma: se não dispõe de fisionomia institucional própria, também não pode ser órgão de extração constitucional com configuração jurídico-institucional. Se se admite que ele é de extração constitucional — e isso é um dado objetivo — e tem configuração jurídico-institucional é porque dispõe de fisionomia institucional própria.” [3]

Mais uma vez, o clamor e as inquietações de um dos arquitetos do Ministério Público, Hugo Nigro Mazzilli, vêm à tona: “Como poderia o Ministério Público junto aos Tribunais e Conselhos de Contas desincumbir-se de seus misteres com independência diante do próprio Tribunal de Contas que ele fiscaliza, se não goza de autonomia funcional, administrativa e financeira?” E arremata: “urge, pois, rever o estatuto jurídico do Ministério Público junto aos Tribunais e Conselhos de Contas, para adequar sua existência e seu funcionamento aos dos demais ramos do Ministério Público nacional” [4]

Num outro plano, é o que a Convenção das Nações Unidas contra a corrupção, recepcionada pelo Decreto 5.687/06, orientou ao acolher, no artigo 6º (item 2), a necessária adjudicação de independência aos órgãos de combate à corrução, entre os quais se encontra o MPC como insubstituível protagonista [5].

No abismo entre o falar e o fazer de vozes intestinas, estará o Guardião da Constituição em sintonia com a verdadeira unidade do MP?


[1] CNMP, Plenário, Consulta nº 0.00.000.000843/2013-39, rel. Cons. Taís Schilling Ferraz, julgamento em 07/08/2013 – unânime.

[2] CAMBI, Eduardo e ANTUNES, Taís. A Proibição do Retrocesso como Salvaguarda da Atuação do Ministério Público. In: Ministério Público: prevenção, modelos de atuação e a tutela dos direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2014, p. 213/214.

[3] SILVA, José Afonso. O Ministério Público junto aos Tribunais de Contas. In: Revista Interesse Público. Belo Horizonte: Fórum, vol. 26. Jul/Ago. 2004. p. 255/264.

[4] MAZZILLI, Hugo Nigro. Os membros do Ministério Público junto aos Tribunais de Contas. In: Licitações e Contratos Administrativos: Uma visão atual à luz dos Tribunais de Contas. Curitiba: Juruá, 2007. pp. 105/111

[5] CONVENÇÃO DE MÉRIDA (Dec. 5687/06 – art. 6.º, 2): “Cada Estado Parte outorgará ao órgão ou aos órgãos mencionados no parágrafo 1 do presente Artigo a independência necessária, de conformidade com os princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico, para que possam desempenhar suas funções de maneira eficaz e sem nenhuma influência indevida. Devem proporcionar-lhes os recursos materiais e o pessoal especializado que sejam necessários, assim como a capacitação que tal pessoal possa requerer para o desempenho de suas funções.”

 

Fonte: ConJur

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