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Diga-me o que é periculum in mora e te direi que concepção democrática tens

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Por Alexandre Bahia, Marcelo Cattoni e Diogo Bacha e Silva

Como havíamos previsto há poucos dias, aqui mesmo na ConJur, inevitavelmente o Supremo Tribunal Federal defrontar-se-ia com a questão da violação das normas que regem o processo legislativo na tramitação da PEC 171/1993. Dito e feito. Parlamentares de vários partidos políticos impetraram Mandado de Segurança contra ato da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, sustentando a violação do artigo 60, parágrafo 5º, bem como do artigo 60, inciso I, da Constituição, pedindo a anulação da votação da referida proposta de emenda e, em virtude da urgência, pleitearam também a concessão de liminar na mencionada ação constitucional.

Protocolado o writ no dia 09 de julho de 2015, período de recesso do STF, o pedido de liminar foi apreciado pelo ministro Celso de Mello, decano da corte, em virtude da ausência do presidente e do vice-presidente, nos termos do artigo 37, I, do RISTF, já no dia 10 de julho de 2015.

No mesmo dia da análise da liminar, a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, através de ato de seu presidente, apresentou informações alegando ausência de urgência na concessão da liminar pleiteada, já que o segundo turno da votação somente ocorrerá em agosto, após o recesso parlamentar.

Partindo do pressuposto da presunção de veracidade dos atos de autoridade pública, o ministro Celso de Mello analisou os requisitos processuais para a concessão de liminar em mandado de segurança. Levantou, então, a hipótese de que a concessão de liminar em mandado de segurança depende da satisfação de três requisitos a partir de sua leitura do artigo 7º, inciso III da Lei 12.016/09: “(a) a plausibilidade jurídica da postulação deduzida pelo impetrante; (b) a ocorrência de situação configuradora de “periculum in mora”; e (c) a caracterização de hipótese de irreparabilidade do dano”. Os dois primeiros requisitos são os conhecidos fumus bonis iuris e periculum inmora, adicionando-se a irreparabilidade do dano alegado pelo impetrante.

A decisão do ministro Celso de Mello denegou o pedido de liminar sob a alegação de ausência de dano irreparável, já que, em sua argumentação, “inexistente risco de irreversibilidade (a votação da PEC 171/93, em segundo turno, somente ocorrerá no segundo semestre, de acordo com as informações oficiais prestadas pelo senhor presidente da Câmara dos Deputados), a medida liminar não se justificará, ao menos no presente momento, pois – tal como sucede na espécie – a alegada situação de dano potencial restará descaracterizada e totalmente afastada”. Independentemente do número de requisitos exigidos para a concessão da liminar, se dois ou três, parece-nos que a discussão é mais profunda do que pode parecer à primeira vista.

Sob as vestes de requisitos processuais e a miscelânea deles feita na decisão – fumus bonis iuris, periculum in mora, dano irreparável ou irreversível, pois que, na verdade, o terceiro está subsumido no segundo –, esconde-se a própria ideia de democracia a ser considerada. É que, conforme nos ensinou já há muito tempo a filosofia analítica da linguagem de J.L. Austin, discurso é ação, e uma decisão judicial como enunciado performativo que é deve ser reconhecida na situação que a envolve e nas consequências que produz; isto é, tanto o discurso da Câmara ao aprovar (inclusive da forma como foi feito) o texto, quanto a decisão do STF possuem um sentido “realizativo” que (de)forma o edifício democrático-republicano brasileiro.

Desta feita, a decisão denegatória da medida liminar proferida pelo ministro Celso de Mello entendeu que não há dano irreparável no procedimento adotado pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados consistente no fato de colocar em discussão e votação de emenda aglutinativa um dia após emenda substitutiva de texto original de Proposta de Emenda à Constituição ter sido rejeitada pela Casa Legislativa. Em outras palavras, entendeu que a violação ao artigo 60, parágrafo 5º da Constituição não é urgente a ponto de merecer a concessão de liminar e, no mínimo, posterga a alegação de dano.

Por mais que se queira pintar o contexto sub judice como uma questão de querela entre lados políticos antagônicos ou, ainda, como uma questão semântica e procedimental de espécies distintas de apresentação de proposições legislativas, o que está em jogo é algo bem diverso. É a própria condição de possibilidade de instituição de uma comunidade política de cidadãos livres e iguais. O que está em causa é o projeto democrático inaugurado e estabelecido pela Constituição de 1988.

O STF, ao considerar, no caso em questão, que não havia dano irreparável apto a merecer a concessão de liminar, acabou por dizer que eventual lesão à Constituição e ao projeto democrático pode muito bem aguardar o momento da posterior análise de mérito, estabelecendo, assim, um perigoso estado de exceção constitucional. Explicamo-nos.

É que se o caso em comento dependesse efetivamente de aprofundamento cognitivo na análise probatória, através de perícia judicial, depoimento de testemunha, talvez a conclusão do ministro Celso de Mello seria justificada. No entanto, sabendo que o instituto do mandado de segurança exige do impetrante apenas a demonstração da violação a direito líquido e certo e que, na linguagem processual, representa apenas a comprovação da ilegalidade através da análise documental da controvérsia, tem-se que o não reconhecimento da lesão provocada à garantia democrática estabelecida no artigo 60, parágrafo 5º da Constituição mesmo que em sede de cognição sumária, permite um estado de suspensão de normatividade constitucional, à semelhança de um estado de exceção sem, entretanto, a configuração dos requisitos estabelecidos pela Constituição.

Em um Estado Democrático de Direito, qualquer lesão provocada à Constituição e às garantias democráticas constitui-se em dano irreparável, em dano irreversível, e deve ser rechaçada, independentemente do momento processual. Qualquer lesão às condições existenciais do Estado Democrático de Direito e o não reconhecimento dessa lesão pelo Poder Judiciário ocasionam efetiva perda de legitimidade ao próprio exercício do poder público, esta sim irreparável.

Quer nos parecer que o STF não compreende, tanto neste mandado de segurança, quanto no anterior (a respeito de outra “manobra” da Câmara, a que levou à reapresentação da PEC sobre financiamento empresarial de campanha): (i) qual o papel deste writ, uma criação brasileira que, desde a origem, possui intrínseca familiaridade com questões políticas de alta indagação; (ii) a ideia de que, embora um ato de Poder Público possua presunção de legalidade/veracidade, isso não impede a concessão de liminar, pois que, fosse assim, essa medida estaria vedada à maioria dos mandados de segurança; (iii) que esta é uma ação de cognição sumária e que é justamente por isso que se justifica uma análise do “fumus boni iuris” em liminar, a partir dos documentos acostados e da legislação; (iv) do papel do parlamentar em defender a regularidade do processo legislativo, ainda mais quando este se refere aos estritos limites de alteração de uma Constituição super-rígida. Ora, mais uma vez, é preciso lembrar que o STF possui jurisprudência consolidada sobre o papel do parlamentar em defender um “direito público subjetivo” de regularidade do processo legislativo; de outro lado, tocando especificamente o caso, ou a Constituição é norma superior e sua alteração deve ser vista como algo excepcional – e, logo, as normas que tratam de tal possibilidade também devem ser interpretadas de forma restritiva –, ou a diferença daquela frente a uma lei ordinária será basicamente um problema de quórum. No processo de alteração ou criação de uma lei ordinária, emendas aglutinativas podem ser utilizadas para a reapresentação de projetos de lei rejeitados mediante requerimento da maioria absoluta dos membros da Casa (artigo 67). Tal regra não se aplica às Propostas de Emendas à Constituição (tratadas exclusivamente no artigo 60) – isso para não relembrarmos, mais uma vez, que o parágrafo 5º do artigo 60 deixa claro que a “matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa”: o Poder Constituinte Originário, único que pode limitar o Poder Constituinte Derivado (não é o Regimento Interno da Câmara que poderá fazê-lo), não estabelece diferença quanto à rejeição de uma proposta estar em uma emenda, um substitutivo, na Proposta original ou coisa similar. Se a matéria, que era objeto de uma proposta, foi à votação e foi rejeitada, não poderá ser reapreciada na mesma sessão legislativa.

Assim, é preciso que o STF, de uma vez por todas, seja “consequente” em tomar uma decisão declarando que o processo legislativo de mudança da Constituição não pode ser tratado a partir dos mesmos regramentos do processo ordinário de criação/mudança de leis.

Alexandre Bahia é advogado, doutor em Direito Constitucional pela UFMG e professor adjunto na UFOP e IBMEC-BH.

 é professor associado da UFMG, doutor e mestre em Direito (UFMG).

Diogo Bacha e Silva é advogado, mestre em Direito pela FDSM e professor e coordenador do curso de Direito da Faculdade de São Lourenço.

 

 

Fonte: ConJur

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