Nos acordos criminais, como os de aplicação consensual da pena e de delação premiada, o acusado é sempre coagido pelo Ministério Público para aceitar a proposta oferecida pelo órgão, pois está sob a pena de receber uma punição maior caso recuse a oferta e decida se submeter a julgamento. Com isso, o compromisso fica viciado, já que não se dá por livre escolha. Outro vício deste tipo de transação diz respeito ao seu objeto, a liberdade do acusado, um direito indisponível, portanto, inegociável.
Esse é o entendimento dos advogados Aury Lopes Jr., do Aury Lopes Jr. Advogados Associados, e Diogo Malan, do Mirza & Malan Advogados. Na mesa em que dividiram nessa quinta-feira (27/8) no 21º Seminário Internacional de Ciências Criminais em São Paulo, os criminalistas criticaram duramente os mecanismos de assunção de culpa em troca de redução da pena.
A aplicação consensual da pena (plea bargaining) é um instituto surgido nos EUA que possibilita que o Ministério Público e o acusado firmem um acordo no qual este reconhece sua culpa e renuncia ao julgamento em troca de um tratamento mais brando da pena. Segundo Malan — que é professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro — o instituto está sendo cada vez mais aplicado nos países que adotam o sistema Civil Law. Dessa maneira, há muitos que defendem a sua implantação no Brasil. Inclusive, o mecanismo está previsto nos projetos dos novos Código Penal e de Processo Penal em discussão no Congresso.
Mas o criminalista argumentou que os entusiastas da medida desconhecem a posição da doutrina norte-americana. De acordo com ele, os juristas do país dizem que o instrumento funciona “essencialmente com base na coação do acusado sob ameaça explícita de sofrer uma pena mais gravosa caso não concorde”. Assim, o acusado carece de autodeterminação e livre-arbítrio. Para demonstrar a invalidade desse tipo de acordo, Malan traçou um paralelo com o Direito Civil, e afirmou que contratos firmados sob coação são viciados e anuláveis.
O mesmo raciocínio se aplica à delação premiada, avaliou o especialista em Direito Penal à revista Consultor Jurídico. A seu ver, nessa medida também há vício de vontade, especialmente quando o acusado está sendo exposto pela imprensa, preso cautelarmente ou com seus bens bloqueados — situações que, na visão de diversos criminalistas, forçaram investigados na operação “lava jato” a colaborarem com a Justiça.
A discrepância de forças entre as partes é mais um problema destacado pelos doutrinadores dos EUA, apontou o advogado. Isso porque os “poderes hipertrofiados” do promotor fazem com que ele infle de maneira artificial sua acusação para que o acusado tenha um compromisso menos vantajoso. O resultado disso é uma percepção negativa da sociedade quanto à ética do sistema jurisdicional.
Pior que a aplicação consensual da pena nos EUA seria importá-lo para o Brasil sem estudar a fundo as diferenças entre os ordenamentos jurídicos, opinou o professor da UFRJ. Lá, há um controle popular sobre promotores, que são eleitos por voto popular, e critérios mais rigorosos para condenar criminalmente alguém — nos tribunais federais, por exemplo, é necessário que todos os 12 jurados decidam que o réu é culpado.
Contudo, Malan considera inevitável que o instituto chegue ao país, especialmente depois que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos reconheceu a sua validade e importância na no combate à corrupção, ao crime organizado e à superpopulação carcerária. Ele lembra que o caso que motivou essa decisão era extremo. Na ação movida contra a Geórgia, dois homens alegaram que a aplicação consensual da pena a que se submeteram foi injusta, uma vez que eles foram coagidos a firmar o acordo pelo fato de que, na época, apenas sete dos 17.639 réus que se submeteram a julgamento no país foram absolvidos.
O índice é parecido com o dos EUA. Lá, 97% dos acusados de crimes federais celebram compromissos para renunciar ao processo, e, dos 3% que decidem ir até o fim, 92% acabam recebendo sentença desfavorável.
Então, se não der para impedir a criação do instrumento na legislação brasileira, será preciso oferecer uma “resistência democrática” concentrada na redução de danos, apontou Malan. Como parâmetros mínimos para a aplicação consensual da pena por aqui, o criminalista recomendou, entre outras sugestões, que a legitimidade para propor o acordo deve ser bilateral; que o compromisso só deve poder ser oferecido pelo acusador se ele tiver elementos mínimos da ocorrência do delito e de sua autoria; que haja previsão legal detalhada de todas as condições que o promotor pode oferecer; e que seja proibido o uso de meios coercitivos e enganosos para forçar o acordo, como vazamento de informações à mídia e prisão cautelar para minar a resistência do acusado.
Desconstrução de argumentos
Em sua palestra, Aury Lopes Jr. — que é professor de Direito Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e colunista da ConJur — elencou os cinco principais argumentos dos favoráveis à implantação da aplicação consensual da pena no Brasil. São eles: a manifestação de um processo penal acusatório; a possibilidade de livre-negociação pelo acusado; a maior celeridade e economia; o desafogamento da Justiça; e o fato de ser um modelo adotado com sucesso em diversos outros países.
Em seguida, o advogado passou a desconstruir um por um desses motivos. Logo de cara, ele explicou que, no modelo brasileiro, há uma radical separação entre os sistemas acusatório e julgador. Como o MP não tem poder de punir — algo restrito aos juízes — ele não poderia negociar a respeito da pena. Com relação à manifestação de vontade, Lopes Jr. lembrou que “não estamos falando [da realidade] de Shakespeare, mas de Nelson Rodrigues, a vida como ela é, suja”, o que faz com que o consentimento não seja dado, e sim extraído pelas autoridades.
Quanto à maior eficiência do Judiciário, o professor da PUC-RS questionou a quem ela serviria. Na sua interpretação, é ilegal aplicar uma pena sem um procedimento regular. Entretanto, ele se resignou que o “Processo Penal completo virou um luxo” no país. Por fim, o criminalista ressaltou que a aplicação consensual da pena vem sofrendo fortes resistências em países europeus como Itália, Alemanha e Portugal. E os EUA, onde ela é mais popular, são o país com mais presos do mundo — 2,2 milhões —, o que mostra que, na realidade, o instrumento contribui para o crescimento da população carcerária.
Lopes Jr. também criticou a delação premiada, acordo que, para ele, também é firmado sob coação e fere a autonomia da vontade, além de violar garantias fundamentais como o direito ao silêncio, ao duplo grau de jurisdição e ao Habeas Corpus. Ele foi categórico ao declarar que na “lava jato” — que investiga corrupção na Petrobras — o juiz federal Sergio Moro está impondo penas altíssimas aos que não colaboraram com a Justiça, como forma de forçar os demais réus e investigados a celebrarem compromissos desse tipo.